'Não saía para não contaminar a casa dela. Tava quase em depressão', conta empregada

Leia relato de mulher que ficou confinada na casa da patroa, onde era vista como ameaça, por três meses

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  • Fernanda Santana

Publicado em 2 de maio de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil/CORREIO

Durante cinco meses, Isabela* pouco viu, senão a casa principal dos patrões, o quarto onde dormia, o mercado da vizinhança e a praia - quando era hora de levar as crianças, filhas dos chefes, para passear. Trabalhava, em média, 12 horas por dia, mas não tinha folga. Era babá, mas também limpava, cozinhava e fazia outros serviços domésticos. “Ficamos esse tempo todo e eu não tinha folga. Eles me colocaram tanto medo”, recorda.

Nos cinco meses em que ficou confinada numa casa em Praia do Forte, com os patrões e os filhos deles, Isabela sempre tinha hora para acordar - nunca depois das 7h. Nunca sabia, no entanto, quando ia dormir. “À noite, eu nem jantava, de tanto cansaço. Eu sentia muito cansaço, bastante dores nas costas”, lembra.    Em março do ano passado, os patrões tinham pedido que ela fosse, com eles, até Praia do Forte, onde cumpririam isolamento social. Isabela deveria ir com eles, pois, como disseram, tinham medo de que ela se contaminasse pela covid-19. Só no final de julho ela pediu demissão. Hoje, está empregada como babá numa casa em que pode voltar para casa.

A história de Isabela foi relatada por ela, primeiro, por e-mail. Ela nos escreveu no dia 22 de abril, depois de ler as reportagens do CORREIO sobre empregadas confinadas e o pedido do jornal de que mulheres na mesma situação denunciassem.

“Para não ficar desempregada, tive que ficar com eles de março até final de julho”, denunciou, de primeira. O resto da rotina ela detalhou por telefone, numa segunda conversa.

O relato de Isabela surgiu na caixa de e-mails na mesma semana em que Roberta* deixou um comentário nas redes sociais do jornal. Detalhes, endereços e personagens mudavam, mas o roteiro permanecia o mesmo: mulher, negra, empregada doméstica, que havia, por necessidade, aceitado cumprir confinamento no serviço. Roberta ficou três meses sem ir em casa, longe dos dois filhos e marido. 

Inúmeras mulheres também nos deixaram mensagens, mas não aceitaram dar entrevistas. As histórias de Roberta, relatada por ela a seguir, e de Isabela (confira neste link), podem dar indícios do que o silêncio daquelas que não aceitaram falar esconde.Leia o relato de Roberta*, confinada no trabalho por três meses

No início da pandemia, minha patroa pediu que eu começasse a dormir no trabalho. Seriam por cinco dias. Depois desses cinco dias, ela pediu que eu dormisse por mais 15. Chegava o prazo, ela ia me dando dias e mais dias. Nessa situação, eu fiquei três meses dormindo lá, sem poder sair. 

Depois ela começou a dizer que ia adotar esse método, de dormir no trabalho, porque ela tinha medo que eu levasse o coronavírus para casa dela. Só que, assim, eu não poderia sair para não contaminar a casa dela, mas a filha, o genro, todos estavam todos os dias na casa dela. Todo mundo tinha o direito de ir e vir, menos eu. Só eu era vista como uma pessoa que poderia contaminar o resto da casa, mas eles também podiam me contaminar. Teve uma hora que não teve mais como. Ela tinha me pedido cinco dias, aí foram dez, foram 15. Quando vi, já eram três meses e eu tenho minha vida também. Aí eu cheguei para minha patroa e disse que não dava mais, que eu tinha família, tinha meus filhos.Ela não concordou comigo, falou que era o melhor a ser fazer numa situação dessa, e me avisou que ia adotar o método de 15 dias eu dormir e 15 dias outra colega, outra empregada doméstica que também já tinha trabalhado lá. Eu disse que não ia aceitar, porque não ia dá para ficar mais tempo sem meus filhos, sem meu marido, porque eu tinha uma vida fora aquilo ali, né? Mas ela não concordou. 

Essa outra colega aceitou e parece que elas iam começar a fazer assim, trabalhando 15 dias, folgando uns dias e voltando.  

Quando eu falei isso, que não poderia ficar, ela simplesmente me mandou embora e disse que não poderia se arriscar de contrair o vírus por causa de mim. Eu resolvi sair, porque para mim não estava dando mais, eu tava quase entrando em depressão, ficava triste, ansiosa. Eu só falava com meus filhos e com minha família pelo telefone, por mensagem.

Lá, no trabalho, eu não conseguia dormir, eu deitava na cama, num quartinho que tinha lá para a gente, e ficava tendo pesadelos, eu tinha falta de ar. Foi uma experiência que não desejo a ninguém.

Hoje, eu estou desempregada, e a gente depende dos bicos que meu marido consegue fazer. Eu quero outro emprego, mas não dessa forma que foi o antigo. 

*Nome alterado a pedido da fonte.