Nascer e morrer no navio negreiro

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  • Da Redação

Publicado em 21 de novembro de 2021 às 09:47

- Atualizado há um ano

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A jovem Barka estava entre os mais de oitenta escravizados resgatados no Le Postillon, primeiro navio negreiro apreendido por autoridades francesas na costa do Senegal, sob a acusação de tráfico ilegal. Em 1818, ela contou sua história no tribunal da cidade senegalesa de Saint-Louis. Rita Maria da Conceição, assim batizada ao chegar ao Rio de Janeiro, saiu menina de Cabinda e, muitos anos depois, seu filho, Manoel José da Conceição Coimbra, lembrou como ela fez a travessia e desembarcou deste lado do Atlântico. Pesquisando trajetórias de mulheres africanas no Brasil e no Senegal, me deparei com relatos de seus sequestros e dos tortuosos caminhos que percorreram quando foram escravizadas. E o mais importante: a partir de suas próprias “vozes” ou de seus familiares.  

Atravessar o oceano podia levar mais de dois meses. Espremidos nos porões dos navios, milhares de homens e mulheres suportavam calor, sede, fome, sujeira, ataques, doenças. Mas essa brutal prisão, ou mesmo a possibilidade de uma morte prematura, nem sempre impediam a afirmação de um “instinto vital”. “Companheiros de bordo” e “malungos”, como alguns desses novos irmãos e irmãs se chamavam, substituíam as relações de parentesco destruídas em sua África natal. Mas novos laços de sangue podiam aflorar. 

Como Manoel José contou em 1846, sua mãe lhe deu à luz em pleno Atlântico. A jovem africana e o filho recém-nascido aportaram  no Rio e, “chegando a esta cidade o navio em que vinham”, foram vendidos “no Valongo a Miguel José Taveira, que fez batizar a ambos por seus escravos”. Na costa ocidental africana, Barka também se viu separada de sua família. Nascida em 1804 no “país dos bambaras”, vale do rio Níger, ela “estava livre em seu país até o momento em que foi levada por alguns mouros, com quem ficou por um longo período”. E não demorou para ser transferida mais uma vez, para Saint-Louis. Como lembrou em 1818, ficava “trancada durante a noite e livre durante o dia”.  

São poucos os relatos de experiências de mulheres negras nesse “infame comércio”. O pensador martinicano Édouard Glissant (1918-2011), em seu livro Poética da relação, enfatiza que, “no espaço do barco, o grito dos deportados é sufocado, como o será no universo das plantations. Esse confronto reverbera até hoje em nós”. Mas quando essas vozes, mesmo abafadas, nos chegam, algumas questões ainda se impõem. Saidiya Hartman, escritora e professora negra estadunidense, questiona: “Quais são os tipos de histórias a serem contadas por e sobre aqueles que vivem em um relacionamento tão íntimo com a morte? [...] Quais são os protocolos e limites que moldam as escritas narrativas como contra-História?”. De um jeito ou de outro, uma coisa é certa: não é amenizando a violência ou simplesmente reproduzindo os “arquivos da escravidão” que poderemos contá-las.  

*Juliana Barreto Farias é doutora em História (USP), professora da Unilab - Campus dos Malês/BA e integrante da Rede de HistoriadorXs NegrXs