'Ninguém pensa em parar': conheça quem está na linha de frente dos testes de coronavírus no estado

Lacen, o laboratório de referência, recebe 300 amostras por dia; mulheres são maioria entre os profissionais

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  • Thais Borges

Publicado em 18 de abril de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arisson Marinho/CORREIO

O setor de Biologia Molecular do Laboratório Central de Saúde Pública Professor Gonçalo Moniz (Lacen) já viu muita coisa. Só para falar em epidemias recentes, houve a dengue, a chikungunya e a zika, além da pandemia da gripe H1N1, em 2009. O próprio Lacen, com seus 105 anos de existência, já encarou muitos surtos de doenças surgidas na Bahia ou do outro lado do oceano. 

Mas algo parece ser uma unanimidade, entre os farmacêuticos, biólogos e biomédicos que são maioria na equipe da biologia molecular: nunca houve nada como a pandemia da covid-19. Desde meados de março, o time tem trabalhado 24 horas por dia para entregar resultados de testes de coronavírus para todo o estado. Só que o impacto de um trabalho mais intenso não vem sozinho. 

Nunca houve algo que fizesse com que a bióloga Luciana Reboredo, 40 anos, saísse de casa com tanto medo, todos os dias, pelos filhos de 3 e 6 anos. Nada semelhante aconteceu para que a também bióloga Vanessa Nardy, 37, tivesse que deixar o filho em outra cidade com medo de infectá-lo. Os dois não se veem há um mês. 

As duas profissionais estão entre os que fazem o chamado exame PCR, o que detecta a presença do vírus nas amostras enviadas ao laboratório. Mas, mesmo com uma rotina de cuidados permanente, a vida de todo mundo ali mudou, independente de cargo ou hierarquia. A própria diretora do Lacen, a farmacêutica bioquímica Arabela Leal, quase não vê as filhas de 12 e 16 anos como antes. 

Desde o Carnaval, no fim de fevereiro, só teve um único dia em que não esteve fisicamente na sede do laboratório - a Sexta-feira Santa.“E mesmo quando não estou aqui, o telefone não para. A vida de todo mundo ficou de ponta cabeça. As minhas filhas têm que entender que a gente está em guerra. Hoje, nós estamos em guerra”, enfatiza Arabela. De fato, as ligações não pareciam dar uma trégua. Em pouco mais de meia hora de entrevista, antes da reportagem visitar os laboratórios, a diretora precisou atender a seis chamadas - todas demandas relacionadas à pandemia. 

No Lacen, há uma linha de frente de profissionais engajados em combater o coronavírus. Mas, da equipe de testes à de higienização, outro aspecto se destaca: a presença majoritária de mulheres. Só na biologia molecular, quando o CORREIO esteve no setor, de pouco mais de dez pessoas presentes no momento, mulheres eram mais da metade. 

“É tão intenso, que a gente nem consegue pensar em parar. Ninguém quer parar. Se algo fizesse a gente ser afastada, acho que seria um sentimento até pior”, afirma Luciana. “É um vírus desconhecido e a gente tem medo de fazer falta nesse sentido também”, completa Vanessa.  O Lacen também produz kits para os testes de covid-19 (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Família Luciana e Vanessa chegaram ao Lacen praticamente na mesma época, há dois anos. Juntas, fazem parte de uma equipe que tem, em média, 20 pessoas diretamente envolvidas com os testes. Hoje, estimam que, em alguns dias, até 500 testes passam por elas. São tantos que fica difícil dizer ao certo. 

Hoje também dividem dramas familiares pessoais. Vanessa teve que deixar o filho de 6 anos com a avó, em Alagoinhas. A decisão foi tomada logo que os casos começaram a aumentar na Bahia, na primeira semana de isolamento social.“Ele está sem aulas e eu teria que ficar 24 horas com ele. Fiquei muito insegura. Nunca imaginei que viveria uma situação como essa”, conta a bióloga. A pressão e o senso de responsabilidade têm pesado para ela. Vanessa sabe que, para que a vigilância epidemiológica seja ativa nas respostas aos infectados, os testes devem ficar prontos em pouco tempo. Nem sempre, porém, é o que acontece. “Às vezes, quem cobra não sabe que a gente precisa dar o resultado com segurança. Se não tiver segurança, tem que repetir (o teste)”. 

Luciana, por sua vez, vive um contexto diferente. Com as horas de trabalho aumentando, quase não consegue ver os filhos de 3 e 6 anos. As jornadas de trabalho são de 12 horas por dia, mas mesmo as folgas parecem não compensar. O dever pode chamar aos sábados, domingos e feriados. 

“Eu tenho medo de me infectar por causa dos meus filhos. Sou do Rio de Janeiro e não tenho com quem deixá-los aqui”, explica. Está tendo um custo extra para pagar um Uber de ida e volta para a babá que fica com as crianças enquanto ela e o marido, funcionário de uma estatal, trabalham.  Natural do Rio de Janeiro, Luciana tem medo de ser infectada e transmitir o vírus aos filhos pequenos (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Quando chega em casa, frequentemente os filhos estão dormindo. Às vezes, sai também sem conseguir vê-los.“A gente está fazendo nosso papel enquanto profissional e é gratificante, mas tem um misto de sentimentos. Para isso, a gente está precisando ser ausente como mãe, porque não estou conseguindo dar a atenção devida para os filhos. Me sinto ausente porque até quando a gente consegue estar de folga, a gente quer dormir”, desabafa Luciana. Ao longo das semanas, elas têm visto o isolamento social diminuir. Nos primeiros dias, saíam do Lacen, no Horto Florestal, por volta das 21h. As ruas estavam tão desertas que faziam medo. “Agora, não. A gente vê o pessoal saindo e vê que o nosso trabalho não vai acabar agora. Enquanto o isolamento estiver dando certo, eles não vão acreditar. Mas, na realidade, a gente que vê aqui, todos os dias, os positivos aumentando”, reforça Vanessa. Os kits incluem dois swabs - grandes 'cotonetes' - para coletar a secreção que será testada (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Resultados Cada um desses resultados passa pela farmacêutica Eline Pimentel, 51. Ela, que chegou ao laboratório há 27 anos, hoje é uma das responsáveis pela atualização dos resultados. Entre os colegas, alguns até riem do nível de preocupação de Eline. 

Aos risos, uns narram um episódio recente que sintetiza bem o caso: antes de ir embora, depois de tirar os equipamentos de proteção individual (EPIs), fez um ‘tapetinho’ usando papel toalha. A ideia era forrar o chão para evitar que seus sapatos “da vida real” tivessem contato com o chão do setor de biologia molecular. 

Eline admite ser extra cuidadosa. Explica que pesquisas recentes têm indicado que os momentos mais perigosos e com maior chance de infecção, por parte dos profissionais de saúde, é justamente na “desparamentação” - quando estão tirando os EPIs.  A farmacêutica Eline trabalha no Lacen há 27 anos (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) “Sempre tive cuidado, mas agora está redobrado. As pessoas não acreditam no que pode acontecer. Elas não estão acreditando no que a gente está prevendo. Passei pela dengue, pela zika, pela chikungunya e não era assim. Essa pandemia veio também para a gente refletir”, enfatiza a farmacêutica.  Há 16 anos trabalhando no laboratório, a coordenadora dos laboratórios de vigilância epidemiológica, Felicidade Mota, 49, se acostumou a apagar as luzes do Lacen, ao sair, à noite. De casa, porém, o trabalho continua. Além da gestão em si - que vai desde a compra de insumos até a busca por novos equipamentos -, precisa se atualizar como pesquisadora. 

Como as pesquisas sobre a covid-19 estão a todo o valor, em todo o mundo, ela tenta ler as principais novidades científicas a cada dia. “Estou muito cansada. A gente praticamente mora aqui no Lacen. Vi o H1N1 em 2009, trabalhei com a zika e a chikungunya em 2015, que foi um turbilhão, mas foi menos exaustivo”, diz ela, que tem doutorado em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-BA). 

Analisar os vírus de síndromes respiratórias é um tanto diferente de doenças como a zika e a chikungunya, que não precisam de biologia molecular. Assim como há a necessidade de pessoas preparadas especificamente para a biologia molecular, os equipamentos são mais sensíveis e o ambiente é mais sujeito à contaminação.  Felicidade explica que os exames para coronavírus são mais complexos que os da zika e da chikungunya (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) “Posso trabalhar sorologias numa bancada livre. Na biologia molecular, não. Você tem que estar em uma cabine. Às vezes, a depender dos protocolos a gente analisa poucos. Tem protocolo que eu só posso rodar 30 amostras (ao mesmo tempo). Numa sorologia, eu rodo 94”, explica. 

Há, ainda, quem tenha chegado agora, como a farmacêutica Márcia Cristina Santos, 54. Vinda da Maternidade Albert Sabin, ela trabalha no setor de recebimento de amostras, que  chegam de todos os cantos da Bahia. É a fase de conferência antes do cadastramento, se o município não tiver feito. 

“A gente tem o nosso ritual de cuidado. Quando eu chego em casa, tiro logo a roupa e vou para o banho. Ninguém pode encostar em mim antes disso. Nunca lavei tanto o cabelo quanto nesses tempos”, brinca. 

Volume Há pouco mais de um ano à frente do Lacen, a farmacêutica bioquímica Arabela Leal não tem dúvidas quando perguntada sobre a principal mudança na rotina no local.“O que mudou foi o volume, que é muito intenso. No primeiro momento, a gente teve que se adaptar. Passar a funcionar 24 horas por dia era uma coisa que a gente queria há muito tempo e foi se adaptando. Hoje, a gente roda especificamente coronavírus 24 horas”, diz. Por dia, chegam, em média, 300 novas amostras de todo o estado. No boletim divulgado na sexta-feira (17), 3.779 casos ainda estavam em investigação. 

Há laboratórios na rede particular que, hoje, fazem o teste. No entanto, mesmo eles precisam ser autorizados pelo Lacen: é necessário ter pelo menos duas validações (dois testes ‘com contraprova’) e, depois disso, todas as amostras positivas também devem ser compartilhadas com o laboratório central. Essa é uma das exigências do Ministério da Saúde para a criação de um biobanco - uma espécie de coleção de material genético para fins de pesquisa. 

O teste feito é o chamado RT-PCR - abreviatura para reação de transcriptase reversa. É uma metodologia considerada mais complexa do que os ‘testes rápidos’, porque procura identificar o vírus ao invés de anticorpos produzidos por ele.  O Lacen, que existe há 105 anos, continua fazendo testes de outros vírus (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) De acordo com Arabela, o tempo médio para os resultados é de 24 horas. No entanto, esse prazo pode aumentar por vários fatores. Um deles é logo na entrada, com o cadastramento no sistema do Ministério da Saúde. 

É preciso que a ficha tenha informações detalhadas, a exemplo do início dos sintomas. Se falta algo, são servidores do Lacen que devem fazer esse cadastro. “Tem amostras que não são cadastradas antes por mil motivos e isso é feito quando chegam aqui. Isso já chega um atraso no fluxo que a gente tem”, explica a diretora. 

Além disso, eventualmente, um teste pode ser refeito. “Às vezes, é a repetição é necessária porque depende da qualidade da amostra feita. Se a amostra não for coletada da melhor forma, a gente não consegue extrair”, completa Arabela. Existe um protocolo para a coleta: o exame deve utilizar dois swabs - que são como ‘grandes cotonetes’ - e recolher uma amostra profunda e com secreção. A coleta é feita na cavidade nasal e na garganta (na nasofaringe e na orofaringe, respectivamente). 

O próprio Lacen produz kits de testes que são enviados para todo o estado. Em um fim de semana, a equipe conseguiu produzir cerca de nove mil kits. 

No teste em si, há pelo menos três etapas: o processamento, a extração (no caso do Lacen, feito de forma automatizada) e, por fim, a amplificação. Essa parte técnica, em si, dura entre cinco e seis horas. “De forma grosseira, é como se a gente alimentasse a situação para que o vírus se reproduzisse e me desse a possibilidade de detectar”.  Para ajudar no cadastro das amostras, servidores da Secretaria de Administração do Estado (Saeb) têm dado apoio ao Lacen (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Nos últimos dias, Arabela tem recebido relatos de servidores que têm sido tratados por conhecidos e vizinhos como “potenciais disseminadores do vírus” - justamente por trabalharem no laboratório. Uma técnica contou que conversava com uma vizinha, também profissional de saúde, no elevador do prédio onde mora. 

A vizinha disse que estava indo para o hospital e perguntou onde a técnica trabalhava. Quando escutou ‘Lacen’, a resposta constrangeu.“A mulher disse: ‘ainda bem que a porta do elevador abriu’ e saiu. As pessoas falam como se nós fôssemos mais contaminados que os outros, mas isso não existe. A gente só fez ampliar o cuidado, porque os profissionais já são treinados para isso. Todas as nossas amostras são potenciais infectantes”, analisa a diretora, citando testes para doenças como raiva e meningite.Mesmo em menor quantidade, os exames para essas doenças não pararam. Para Arabela, o destaque para as mulheres no laboratório está relacionado à própria realidade da área de Saúde. "Existe uma predominância da presença feminina. Mas acho que somos mais acolhedoras, mais cuidadoras", diz.  Máquinas são usadas no processo de extração das amostras (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Estado deve passar a fazer mais de mil testes por dia Nos próximos dias, a capacidade de testes para coronavírus deve passar a mais de mil por dia, em toda a rede estadual coordenada pelo Lacen. Isso porque o número de máquinas envolvidas no processo - parte da análise das amostras, como a extração, é automatizada - foi ampliado.

Uma das medidas é devido ao desbloqueio de máquinas do programa de DST/AIDS de Vitória da Conquista. Esses equipamentos, de acordo com a diretora do Lacen, Arabela Leal, eram fechados para testes de HIV e hepatite. No entanto, um programa do Ministério da Saúde tem desbloqueado as máquinas justamente para aumentar os testes de coronavírus. “Fizemos uma videoconferência com Vitória da Conquista e, na semana que vem, as técnicas de lá vêm fazer um treinamento com a gente. Elas já sabem operar, mas trabalham com HIV, que é uma amostra de soro. Então, a gente achou por bem que elas venham, acompanhem a nossa rotina e tirem as dúvidas”, afirmou Arabela. Essas máquinas devem atender o próprio município, além das cidades vizinhas. 

O secretário estadual da Saúde, Fábio Vilas-Boas, já tinha anunciado a locação de duas máquinas - uma para Guanambi e outra para Porto Seguro. 

"Estamos vendo se instalamos uma terceira em Juazeiro, mas o fabricante ainda não conseguiu a autorização da Anvisa para operar no Brasil. Assim que eles tiverem a disponibilidade, vamos ter um processo de descentralização que vai economizar as 24 horas que a gente perde no trânsito da amostra do interior para Salvador", disse, durante a live do governador Rui Costa, na última terça-feira (15).