Nivaldo Andrade: Mais respeito e carinho com o Pelourinho

O Centro Histórico perdeu metade da população em 20 anos

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  • Da Redação

Publicado em 15 de janeiro de 2019 às 02:00

- Atualizado há um ano

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Coração da Roma Negra, o Centro Histórico de Salvador (CHS) se encontrava bastante degradado e perdia população no final da década de 1970. A criação do Centro Administrativo (CAB), a partir de 1972, e a inauguração da nova Rodoviária (1974) e do Shopping Iguatemi (1975) transferiram funções importantes para uma nova área da cidade e contribuíram para acelerar o processo de esvaziamento da área que, por mais de quatro séculos, foi o centro nervoso de Salvador, da Bahia e, nos seus primeiros 200 anos, do Brasil.

À época, o governo do estado, através da Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (hoje Ipac), com recursos próprios e do governo federal, estava implementando o Projeto Pelourinho, em grande medida fundamentado no relatório elaborado em 1967 pelo especialista francês Michel Parent, que recomendava a restauração dos sobrados do Largo do Pelourinho e arredores, e sua adaptação para fins comerciais, turísticos e culturais. (Foto: Arquivo CORREIO) CLIQUE AQUI E VEJA ESPECIAL COMPLETO CORREIO 40 ANOS+

O Projeto Pelourinho instalou, na década de 1970, equipamentos como o Museu das Portas do Carmo, o Restaurante-Escola do Senac e o teatro anexo, e restaurou igrejas, como a do Rosário dos Pretos e a Catedral Basílica, implementando, em parte, a proposta de Parent. Por outro lado, visando oferecer infraestrutura para os moradores locais, o projeto incluiu ações como a implantação de uma escola profissionalizante e de uma creche e centro de saúde em sobrados restaurados. Esse projeto, contudo, teria uma ação bastante restrita em termos geográficos e quantitativos. Somente após a inscrição do CHS como Patrimônio Mundial pela Unesco, em 1985, a área passaria por uma intervenção mais ampla voltada à sua transformação em centro de lazer e turismo.

No Programa de Recuperação do Centro Histórico (PRCHS), concebido e executado pelo governo do estado entre 1991 e 1997, foram investidos quase 100 milhões de dólares. O PRCHS recuperou fisicamente mais de 500 edifícios, incluindo a restauração de nove monumentos tombados; criou três estacionamentos periféricos – eliminando a circulação de veículos em diversas ruas – e melhorou as redes de infraestrutura. O programa, porém, foi bastante criticado pela retirada compulsória de quase 3 mil famílias que viviam em sobrados encortiçados na área. A modelagem financeira do PRCHS também se mostrou, a longo prazo, equivocada, por exigir vultosos e contínuos investimentos do estado para a manutenção da programação cultural e da segurança. Certamente, o fato do programa não ter contemplado o uso habitacional de qualquer faixa de renda, também contribuiu para o seu fracasso. Na foto, painel rarissimo da Ordem Terceira de São Francisco (Foto: Arquivo CORREIO) A eleição da oposição ao governo, em 2007, não representou avanço na questão. O modelo de gestão voltado para o turismo e lazer e baseado na “animação cultural” foi abandonado, sem que fosse substituído por qualquer outro. O Plano de Reabilitação Participativo do Centro Antigo de Salvador, elaborado pela nova gestão estadual, identificou 1.100 imóveis fechados ou em ruínas no CHS e arredores e propôs que fossem reabilitados em 8 mil moradias para famílias de classe média e para aquelas em situação de vulnerabilidade social já residentes na área.

Apesar das boas intenções, quase nada foi feito nesse sentido. Até projetos de habitação social, como o da comunidade da Vila Nova Esperança, uma promessa da nova gestão, seguem até hoje, mais de 10 anos depois, paralisados, enquanto as famílias “temporariamente” desalojadas para a execução da obra continuam em casas de passagem.

O que se observa no CHS é um progressivo esvaziamento: de 11.949 habitantes em 1991, passaram a 8.255 em 2000 e apenas 5.985 em 2010. Uma perda de metade da população em menos de 20 anos. Esses dados demonstram a necessidade urgente de elaboração de um plano urbanístico para a área, envolvendo todos os atores sociais. Esse plano deverá ser elaborado de forma integrada e participativa, atraindo investimentos públicos e privados e prevendo a criação de incentivos fiscais e a redução ou isenção de impostos para proprietários de imóveis que os mantenham conservados e utilizados. 

Deverá contemplar uma série de usos, sem esquecer, evidentemente, a habitação para diversas faixas de renda, incluindo os atuais moradores. Só assim poderemos garantir a preservação desse sítio urbano cujos valores são mundialmente reconhecidos, e só assim poderemos garantir que ele volte a ser um espaço cívico, de integração social e de estruturação urbana, no qual o invisível se visibiliza e a alteridade se constrói.

*   Nivaldo Andrade é professor da Faculdade de Arquitetura da Ufba e presidente da Direção Nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB)