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Paulo Leandro
Publicado em 8 de julho de 2020 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Hoje é quarta-feira, dia de festa e alegria, o acarajé é a delícia, e o fogo, elemento natural do jogo, quando enfrentam-se Fluminense e Flamengo, pela ordem, criador e criatura, ou os irmãos Karamazov, como definiu, um dia, Pai Nelson Rodrigues.>
O dramaturgo e cronista aludia aos broders do romance de Dostoiévski da forma como somente Nelson Rodrigues poderia escrever e mais ninguém:>
- Eu gostaria de saber que gesto, ou palavra, ou ódio deflagrou a crise. Imagino bate-bocas homicidas. E não sei quantos tricolores saíram para fundar o Flamengo. Há um parentesco óbvio entre o Fluminense e o Flamengo. E como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro.>
Como em muitas famílias, os irmãos terminam brigando e até se matando, seja por herança ou amor edipiano inconsciente. No começo, o Fla pugnava pelo esporte da eugenia, o remo, modalidade tida como ideal para melhorar a raça brasileira, com músculos e atletas brancos, nos seus barcos ligeiros de zona sul.>
O Flamengo, como irmão mais velho, pôde falsificar a certidão de nascimento, pois tinha acesso fácil aos cartórios, estas instituições legitimadoras do controle dos fortes sobre os fracos, dos grileiros genocidas sobre os colonos desamparados.>
O clube de regatas, nascido em uma república estudantil, viera ao mundo a 17 de novembro, mas para coincidir com nosso primeiro golpe de estado – viva a República! – ficou como a data oficial o 15 de novembro de 1895.>
Quando ainda eram bons irmãos, os flamengos ajudaram na fundação do pioneiro Fluminense em 1902, gentileza retribuída 12 anos depois, quando uma dissensão no tricolor gerou o time de foot-ball do Flamengo.>
Todo time tinha seu estádio menos o Flamengo. Por treinar na rua e nas praias, nas praças e nos terrenos baldios, os jogadores terminaram criando amizade com a galera, uma hipótese para a expansão rápida de sua torcida, enquanto os outros se trancavam em suas propriedades privadas. >
Flamengo e Holandês são considerados sinônimos, mas Fluminense reporta mesmo só ao gentílico das pessoas nascidas no Rio de Janeiro. O certo é perceber no clássico a ser disputado hoje um manancial inesgotável de aspectos culturais resultantes do e no Fla-Flu.>
No primeiro confronto, os dissidentes tricolores estavam tão acostumados a saudar a sua torcida, a ponto de a ela dirigirem-se, ao final da partida, como se ainda estivessem conectados às Laranjeiras.>
Foi o irmão de Nelson Rodrigues, também cronista Mario Filho - deu nome ao Maracanã - quem criou a expressão Fla-Flu, dando vazão a seu hábito de embalar produtos esportivos, como seguiu fazendo em todos os jornais por ele dirigidos ou editados.>
Hoje, o Flamengo leva vantagem, por ter vencido a Taça Guanabara. Em caso de nova vitória, desta vez, conquistando a Taça Rio, leva o título, sem precisar da negra, apelido escravocrata, capaz de inspirar uma nota de nojo dos antirracistas.>
Se o Flu vencer, tem a negra, como os senhores dos corpos escravizados pelo tráfico negreiro chamavam as jovens apetecíveis colocadas em disputa nas animadas partidas de gamão disputadas pela elite, antes de o turfe, a regata e o futebol tomarem conta.>
Para evitar a negra, basta o Flamengo vencer. Empate no tempo normal leva a decisão para a disputa de penalidades máximas da marca da cal, como ensinavam, em inútil pedantismo, os professores de arbitragem. Disputa de pênalti é a mesma coisa.>
A final da Taça Rio é Fla-Flu porque o velho Urubu, hoje lavado a Omo, venceu o Volta Redonda por 2x0, enquanto o Pó-de-Arroz eliminou o Botafogo com o empate de 0x0, no estádio Nilton Santos, um dos melhores jogadores e homens de caráter do futebol brasileiro.>
O jogo desta quarta-feira será no Maracanã por escolha do Fluminense, cujas chances de vencer concentram-se no bloqueio forte, orientado pelo treinador Odair Hellmann, inclinado a manter o volante Dodi no lugar de Marcos Paulo, mas é bom confirmar.>
Já o Flamengo do treinador Jorge Jesus tem como um dos trunfos o Rei dos Clássicos, Bruno Henrique, como o pessoal do Rio gosta de chamar, para dar aquela boa valorizada de sempre. Quem quiser a escalação, o que não falta é site e blog, não sei se confiáveis; melhor ligar pro técnico.>
Quem faz questão de qualidade, e já passou da idade, recomendo apenas verificar o placar por curiosidade, quinta de manhã, em respeito às mais de 66 mil vítimas de covid-19 que esta gente mesquinha e estúpida insiste em considerar uma gripezinha, morra quem morrer, expressão tumular do filósofo Cuma, das terras grapiúnas.>
Muito melhor, para quem tem internet, ver melhores momentos dos verdadeiros clássicos do passado, no canal 100 ou outros links, em vez de entristecer-se com mais um Fla-Flu mentiroso, sem craques, sem charme, pura correria, a bola menos importa, tomando chutão, coitada, um Fla-Flu cheio de confusão de bastidores para definir quem transmite o jogo pela tevê.>
Largue de ser otário de ficar dando ibope a gente desqualificada, mas se o amigo internauta não tem como evitar, porque está quimicamente dependente de fútil-ball, assista - a tevê do Fluminense vai passar na internet e confirme, mas parece que o Estadão também anunciou.>
Curta o Fla-Flu, então, achando estar assistindo a um bom jogo, pois narradores e comentaristas não faltarão para convencê-lo que a decisão de amanhã será uma maravilha e não vai contribuir em nada, nadinha, para aumentar a estatística macabra deste triste país desgovernado onde o culto à morte tornou-se banal e cotidiano.>
Paulo Leandro é jornalista e professor doutor em Cultura e Sociedade.>