Nossas cores negras na História: as lições de Maria Firmina e Carolina de Jesus

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  • Da Redação

Publicado em 20 de novembro de 2021 às 12:54

- Atualizado há um ano

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Carolina de Jesus - Foto: reprodução por Carolina de Jesus - Foto: reprodução

O livro é uma arma tradicionalmente usada contra os subalternizados de distintos grupos. Em sociedades como a brasileira, a herança colonial incumbiu-se de manter o poder branco e patriarcal associado ao letramento, restringindo o acesso dos saberes dominantes a certos indivíduos e grupos. Instituiu-se desde cedo o “privilégio epistêmico”, articulado à intersecção das opressões de classe, raça, gênero e sexualidade, visando apagar as vozes de sujeitos subalternizados, especialmente as de mulheres negras e indígenas.

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Como exceção a essa lógica dominante da exclusão, Maria Firmina dos Reis (1822-1917) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977) surgem como mulheres negras e pobres que acessaram o letramento e conquistaram um lugar de destaque no mundo da literatura. Com a publicação de suas principais obras separadas por 99 anos, ambas subverteram a lógica da “colonialidade do saber” ao investirem em projetos literários inusitados e se tornarem importantes escritoras brasileiras.

Na apresentação de Úrsula (1859), primeiro romance brasileiro escrito por uma mulher, Maria Firmina denuncia o campo literário como um lugar que reflete os preconceitos e violências daquela sociedade: “Sei que pouco vale esse romance, porque escrito por uma mulher”. Nessa obra, ela coloca em evidência os espaços de convivência e negociação construídos por negros e brancos no século XIX, além de abordar a condição de subalternidade vivida pelas mulheres da época. Filha de uma mulher liberta, Firmina atuou como professora de primeiras letras de 1847 a 1881, ao mesmo tempo que escrevia poesias, contos, músicas e romances, muitos deles publicados em jornais da província do Maranhão, onde viveu. Seu trabalho, sua voz e sua trajetória, porém, passaram por um processo de silenciamento que durou mais de um século. Co-autora deste artigo, Edinelia Maria Oliveira Souza é doutora em História (UFRJ) e professora titular da Uneb Décadas depois da abolição, a mineira Carolina Maria de Jesus, neta de um escravizado, investiu no sonho de ser reconhecida como escritora. Em seu livro de poemas Clíris (inédito até 2019), ela dramatiza aquele dia do início de fevereiro de 1941, em que se dirigiu à redação do jornal Folha da Manhã para tentar publicar os versos feitos em homenagem ao presidente Vargas. No bonde, de volta para casa, perguntou a um senhor sentado ao seu lado o que significava ser poetisa. O homem respondeu que poetisa era “mulher que tem o pensamento poético” e indagou se ela era uma poetisa. Carolina responde, ainda surpresa, “o jornalista disse que eu sou”. O poema foi publicado no jornal em 24 de fevereiro daquele ano juntamente com uma foto da autora. Vinte anos depois, a catadora de papel que frequentou a escola apenas por dois anos publicaria seu primeiro livro. Quarto de Despejo: diário de uma favelada chegou a ser traduzido para treze idiomas e a transformou em escritora reconhecida no início dos anos de 1960.

Foi com astúcia e com muita inteligência que Maria Firmina e Carolina de Jesus abriram fendas nas estruturas do poder hegemônico, balançando os pilares do edifício da dominação. Essas precursoras da Literatura Negra Brasileira agiram com sagacidade e, sutilmente, a partir de um lugar de suposta fragilidade, problematizaram estruturas coloniais que as inferiorizavam e desumanizavam.

Esse movimento individual se converteria num processo coletivo ao longo das décadas, e as mulheres negras, que antes eram caladas e infantilizadas (infans, como diz Lélia Gonzalez, “é aquele que não tem fala própria”), passaram a contar, a cantar e a escrever suas próprias histórias. Quando mulheres negras começam a publicar, criam formas de enfrentamento às forças sistêmicas que as oprimem, assumindo o risco de falar com voz própria e atuando no sentido de reestruturar as relações de poder existentes. Esse é o importante legado que Maria Firmina e Carolina deixaram para as gerações futuras. São “pássaros negros” do passado que inspiram outras tantas mulheres negras a levantar voos. Co-autora deste artigo, Raiza Cristina Canuta da Hora é doutoranda em História (UFBA).  Somente no século XXI, Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus começam a recuperar o lugar de importantes escritoras brasileiras. Graças ao movimento político que ganha força nos anos 1970 - marcado pela construção do 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra, bem como pela atuação de organizações como o Movimento Negro Unificado (MNU) - as vozes negras ampliaram seu alcance dentro e fora das universidades. A conquista de políticas públicas de ação afirmativa a partir dos anos 2000, quando grupos subalternizados intensificaram sua presença nos meios acadêmicos, tornou possível a ruptura do “privilégio epistêmico”, permitindo que se fizesse frente ao “memoricídio” (a morte da memória), que negava a homens e mulheres negras a condição de sujeitos da nossa história.

Ao recuperar experiências e trajetórias de nossas ancestrais, do passado próximo ou distante, tornamos a história mais humanamente compreensível e, certamente, muito mais próxima do real. Não voltarão a nos calar! Seguiremos com nossas cores negras ocupando as páginas da história.

*Raiza Cristina Canuta da Hora - doutoranda em História (UFBA). Ambas integram a Rede de HistoriadorXs NegrXs.

Este artigo compõe a Ocupação da Rede de HistoriadorXs NegrXs em veículos de comunicação de todo o Brasil neste 20 de novembro de 2021. No Correio, o espaço foi cedido pela colunista, a jornalista Midiã Noelle.