Nove vidas perdidas e o “neocolonialismo perfeito”

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Publicado em 5 de dezembro de 2019 às 09:08

- Atualizado há um ano

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“Corpos jogados ao mar, gente apertada, amontoada, chicoteada de lá, chicoteada de lá, de lá até cá, de lá até cá”. Lembro como se fosse ontem, o ano era 2007 e o espetáculo era O Dia 14, de Ângelo Flávio. Neste início de dezembro de 2019, mais de 12 anos depois, ao saber da morte de nove jovens em Paraisópolis, a letra desta canção encenada no Teatro Gregório de Matos, voltou a ecoar na minha cabeça, pois é como se fosse atualizada e materializada nesse crime tão brutal: jovens no Baile 17 foram agredidos [supostamente?] pela polícia militar do Estado de São Paulo com cassetetes, assim como os nossos antepassados foram chicoteados; imprensados – e apertados - nas vielas estreitas; e os mortos amontados no chão, como pedaços de carne - e apenas. 

E é isso. Nós perdemos Bruno Gabriel dos Santos, 22, Denys Henrique Quirino da Silva, 16, Dennys Guilherme dos Santos França, 16, Eduardo Silva, 21, Gabriel Rogério de Moraes, 20, Gustavo Xavier, 14, Laura Victoria de Oliveira, 18, Mateus dos Santos Costa, 23 e Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16. Jovens que foram a Paraisópolis apenas para curtir. Nem moravam na comunidade. Muitas pessoas podem relativizar e até justificar estas mortes desqualificando-as. Ou dizendo que as vítimas deveriam estar em casa estudando ou algo do tipo, e cerceadas do direito à cultura que sim, os bailes funks proporcionam. E eu espero que não seja o seu caso, carx leitxr. 

De verdade... Espero que reflita sobre as dores das mães e pais destes jovens e se coloque no lugar delas/deles. Que a mesma lágrima que caiu do seu rosto quando assistiu ao primeiro episódio de Amor de Mãe, ao sofrer com as dores da personagem de Regina Casé, caia pela dor das famílias do mundo real. Alguma coisa acontece no meu coração e não é quando passo por locais elitizados e estruturados, como o cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João em São Paulo... A da música do Caetano lembra? Alguma coisa acontece no meu coração quando passo por comunidades com vielas como a de Três Corações e a do Louro, em Paraisópolis, e apenas ao olhar para o lado, me indigno com os prédios gigantescos como os do Morumbi. Em Salvador, sinto a mesma sensação ao ver as desigualdades explícitas entre o Calabar e a Ondina, ou a Santa Cruz e o Itaigara. 

E destaco que não quero aqui desprezar as construções feitas nas favelas com tanto suor e luta. Até porque, como nos ensinou a socióloga Vilma Reis (minha referência sempre), são nestas ruas que muitas vezes não passa uma geladeira, mas passa a nossa esperança. Sonhos e esperança de uma população que há pouco mais de 130 anos tenta minimizar os impactos de mais de 300 anos de escravização do povo preto. 

Recentemente, assisti a participação de dois comediantes, o Yuri Marçal e o Jhordan Mateus, em entrevista ao Pedro Bial. Sempre que possível, Jhordan, que é baiano, destacava de onde é: do Engenho Velho de Brotas. E esse sentimento de pertença que sentimos pelo local em que crescemos e somos criados é muito importante para nossa formação enquanto seres humanos. Há amor e afeto nas quebradas. E há talento. Jhordan, assim como eu, sabe o valor de registrar a sua história através da memória afetiva do espaço em que cresceu. E, pegar as dores, e transformá-las em estratégia de sobrevivência. Ele, na comédia. Eu, na escrita. Mas nem todos entendem a Matrix em tempo. Alguns, grande parte, são barrados da possibilidade de entender a própria consciência negra, sendo tombados no paredão da injustiça brasileira. 

Vim da Liberdade, mas vivi boa parte da minha vida em um local chamado Campo do Milho, no bairro IAPI. Mais precisamente, dos nove aos 19 anos. Muitos jovens da rua morreram naquela época (e acho que hoje ainda devem). Quando cheguei à rua parecia um interior, sabe? Eu brincava com meus vizinhos de bicicleta na quadra e era bem divertido. Mas fui crescendo e as coisas foram mudando. E demorou para eu entender o porque a polícia chegava atirando na quadra e/ou reprimindo as festas de pagode da rua. Ninguém chega atirando nas raves (festas eletrônicas) que cobram ingressos caros, lotadas de pessoas brancas, com equipe estruturada para atender a todos/as no local – pessoas estas que usam todo tipo de droga lícita ou não. Por que conosco sempre tudo é justificado? 

Reflete e faz um teste comigo. Fecha os olhos e se pergunta. Precisava a polícia chegar atirando no pancadão de Paraisópolis? Se você for uma pessoa negra, leia o próximo parágrafo com atenção. Porque é direcionado a você: 

Recentemente, li o texto da Carla Akotirene. Ela disse que “o neocolonialismo é perfeito”. E eu concordo. Não só em referência ao tema e a condução do texto, sobre a absurda nomeação de uma pessoa negra com discurso pró-racismo à presidência da Fundação Palmares, mas em especial sobre como a população preta é mais exigente com a população preta. Neste sentido, precisamos de atenção. Porque a gente só se toca, quando algo nos toca de imediato. 

E sim, a gente precisa se tocar e nos tocar. Se tocar de que as nove mortes em Paraisópolis não foram uma fatalidade. É parte de uma estrutura social que legitima, incentiva e justifica as mortes de corpos pretos. E nos tocar, no sentido de nos cuidar. Porque em terra em que menino chora e a mãe não vê,  são as nossas redes de apoio e afeto nas comunidades que nos salvam. E nesse jogo voraz da sobrevivência, não podemos mais ser peças do jogo. Temos de conduzi-lo para uma mudança real e efetiva para a população negra. 

Ubuntu. 

Texto dedicado à memória de Elitânia de Souza da Hora. A nossa luta no ativismo pelos direitos humanos continua a todo vapor, pelos nossos antepassados e por você, agora, nossa ancestral. Obrigada!