Num tempo da delicadeza

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  • Paulo Sales

Publicado em 20 de dezembro de 2021 às 05:09

- Atualizado há um ano

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Gosto de passear com Pudim, meu pequeno filho peludo, no parque aqui em frente de casa. É um espaço onde posso exercer a contemplação. Patos, gansos, pássaros, galinhas d’angola, garças. A lagoa bem verde, as árvores bem densas, as pessoas caminhando. No último sábado, o passeio foi particularmente agradável. Havia muita gente por lá: pais e filhos, adolescentes gravando vídeos no celular, mulheres fazendo aula de dança, gente se exercitando, gente como eu passeando com seus cães.

Todos os sábados, o parque recebe pessoas que precisam de algum apoio psicológico. Há um núcleo psicossocial por lá, com voluntários que saem para caminhar ou se sentam com essas pessoas para conversar. Ao passar por elas, capto fiapos de confissões, temores, anseios, aspirações, frustrações, pequenas alegrias. Um guarda que reclama por não conseguir pagar a pensão das três ex-mulheres, uma senhora que lamenta a relação fria com a filha, uma adolescente que tenta compreender e ser compreendida pelos pais.

Pesco frases soltas e sigo caminhando, tentando imaginar onde vão desaguar essas histórias de vida, simples e singulares como a de quase todos nós. Há um atmosfera de cortesia que me agrada. As pessoas se dão bom dia, outras levam frutas e água para os pássaros, algumas brincam com Pudim, que já é conhecido por sua fama de valentão, apesar do tamanho diminuto. Enfim, há um hiato de sossego e harmonia naquele pequeno naco de verde incrustado numa das regiões mais movimentadas da cidade.

Mas nem tudo, claro, é perfeito. Soube que uma senhora pouco simpática passou a se arvorar como dona do parque. Andou ralhando com funcionários de limpeza que descansam na hora do almoço, expulsou um cãozinho vira-lata que encontrou abrigo por lá, humilhou uma garota filha de colombianos (por sinal, muito simpáticos e educados) dizendo para ela voltar ao seu país. Em suma, uma perfeita imbecil.

Estabelecendo um paralelo entre o parque e o país, creio que essa senhora representa os estertores de uma forma muito peculiar de ver o mundo. Egoísta, canalha, intolerante, preconceituosa, elitista. Uma minoria que, sabe-se lá como, conseguiu um poder enorme e não sabe o que fazer com ele. No nosso microcosmo de verde e tranquilidade, ela é uma intrusa, um corpo estranho. E parece, cada vez mais, não haver lugar para gente assim na vida em sociedade.

Creio que ainda penaremos muito em 2022. Sofreremos tudo que ainda é preciso padecer até escorraçarmos de vez o mal do nosso país. O estrago levará décadas para ser mitigado e por fim reparado. Mas é como se já houvesse um clarão da alvorada despontando lá longe. Expulsando a sordidez, o cinismo, a calhordice, a ignorância orgulhosa de si mesma.

Tudo que eu desejo, neste fim de ano e no próximo, são bons sentimentos. Sim, soa ingênuo e um tanto cabotino, eu sei. Mas por que não? Com estoicismo e alguma obstinação, avançaremos. E que o Brasil seja contaminado pela solidariedade, gentileza, compaixão, amabilidade e polidez. Que se torne um imenso parque, com pessoas que se cumprimentam e não desejam o mal alheio. Como diria Chico Buarque, nos encontraremos com certeza, talvez num tempo da delicadeza. Que seja breve então.

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Aos raros e atentos leitores: a coluna se dedicará a um breve repouso e volta no dia 10 de janeiro. Um feliz ano novo para todos nós.