Número de mulheres mortas na capital e região metropolitana é o maior desde 2014

Comparação é entre os meses de janeiro e fevereiro, com dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP)

Publicado em 6 de março de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Em um único dia do mês de fevereiro, quatro mortes violentas de mulheres em Salvador. O caso da empregada doméstica Jessi Santiago dos Santos, 29 anos, grávida de seis meses, assassinada a facadas pelo neto da patroa, chocou, mas não foi o único. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2020, 25 mulheres foram assassinadas em Salvador e Região Metropolitana (RMS). Os dados, levantados pelo CORREIO junto aos boletins da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP), através do projeto Mil Vidas, mostram aumento no número de mortes de mulheres pela primeira vez desde 2014, quando 35 mulheres tinham sido mortas.

Embora não seja possível, ainda, dizer quantos destes casos se enquadram como feminicídios - quando a mulher é morta justamente pelo fato de ser mulher -, os dados chamam a atenção para uma violência que as tem como alvo. No ano passado, 113 mulheres foram assassinadas em Salvador e RMS - 18,9% a mais do que as 95 mortas ao longo de 2018.

Para o sociólogo César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), tem sido surpreendente o crescimento no número de feminicídios e da crueldade. Muitas vítimas, aponta, são torturadas.“A gente tem apontado esse crescimento nos feminicídios que, em parte, estão ligados a disputas de facções, a questões envolvendo jovens mulheres e carregadas de crueldades, em que elas são torturadas e, depois, mortas”, declarou.Epidemia A desembargadora Nágila Brito, presidente da Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça da Bahia, trata os casos de feminicídio no Brasil, de um modo geral, como uma espécie de epidemia. Segundo ela, tem sido grande o número de recursos envolvendo casos de feminicídio e outros tipos de violência contra a mulher.

“Isso envolve sentimentos, envolve relacionamento, o emocional das pessoas. Só a aplicação de uma pena não vai resolver a história de uma vez por todas. A gente vai ter que procurar a seara psicológica, social”, diz.

Para ela, a saída para a redução da violência de gênero está numa educação antimachismo. “A gente tem que criar nossos filhos e filhas para a igualdade, menino e menina são iguais. Enquanto nós fizermos aquela vista grossa para as coisas que os filhos fazem e exigirmos das nossas meninas que voltem cedo para casa, o menino vai crescer acreditando que pode tudo, inclusive matar a mulher que ele acha que não segue as regras”, explica.

A cientista social Silvia Ramos, que é coordenadora geral da Rede de Observatórios da Segurança e esteve nessa quinta-feira (5) em Salvador em Salvador para apresentação do relatório chamado ‘A cor da violência na Bahia’, aposta numa relação entre violência de gênero e disputa por facções que não aparece como feminicídio. Silvia Ramos apresenta os dados da Rede de Observatórios da Segurança no Ceao, Ufba (Foto: Marina Silva/ CORREIO) “Você tem várias categorias de punição, em que a morte é a mais grave, mas vai desde apanhar, ser humilhada, ter o cabelo cortado, ser proibida de sair de casa, sofrer violência sexual. Se você é namorada de um cara de uma facção e você não pode passar em uma rua de outra porque você morre, isso acontece porque você é mulher. E eu acho que a gente ainda não está vendo a gravidade disso”, declarou.

A violência de gênero, além do racismo, foram o tema do relatório apresentado nessa quinta, em Salvador, pela Rede de Observatórios de Segurança, vinculada ao Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes, e conta com pesquisadores da Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

Segundo o relatório, embora as mulheres não sejam a maioria das vítimas dos homicídios no Brasil - nem na Bahia - elas têm sido cada vez mais vítimas de violência sexual. De 2009 a 2017, esse tipo de registro cresceu 887% na Bahia. Neste intervalo de oito anos, 6.975 mulheres sofreram algum tipo de violência sexual no estado.

O que chama atenção, no entanto, é a escalada no número de casos: em 2009, foram 121 registros, enquanto oito anos depois, 1.194 mulheres foram parar em unidades de saúde após sofrerem violência sexual. As três maiores cidades do estado também concentram os maiores índices de crescimento. Salvador teve alta de 2.464 casos de 2009 a 2017, embora os números estejam caindo desde 2015. Vitória da Conquista teve aumento de 1.750%, mesmo com queda acentuada de 2016 para 2017. Já Feira de Santana teve crescimento de 130% no número de casos – e eles vêm subindo pelo menos desde 2015.

“Não só olhando para os números gerais, mas compreendendo as dinâmicas, é possível ver que a violência de gênero se articula de uma forma extremamente perversa, sofisticada e difícil de identificar de forma criminal”, afirmou Silvia Ramos.

A cor da violência O relatório, que analisa casos de homicídios e violência sexual na Bahia com base em números do Ministério da Saúde (DataSUS), também aponta que, a cada dez mulheres vítimas de violência sexual na Bahia, sete são negras. Entre elas, a taxa de estupros é de 16 casos para cada 100 mil habitantes. Já entre as mulheres brancas, a taxa cai pela metade, de 8 para cada 100 mil habitantes.

“O machismo presente na base da sociedade brasileira é o principal fator de vitimização das mulheres de todas as idades e, principalmente, as mulheres negras”, diz o relatório. Entre as vítimas, a maioria tem entre 10 e 14 anos (taxa de 38,3 para cada 100 mil), seguidas das de 0 a 4 anos de idade (taxa de 24,4).

A Secretaria de Segurança Pública da Bahia disse em nota que, “sobre os casos de violência contra a mulher, além das inúmeras ações repressivas, a SSP, em parceria com a SPM [Secretaria de Políticas para Mulheres], também participa de campanhas educacionais, que inclusive deveriam ter a colaboração de toda a sociedade, para a extinção da cultura do machismo”.

Taxa de homicídio entre negros é 4 vezes maior

Se as mulheres negras são as vítimas preferenciais dos crimes de violência sexual, os homens jovens negros, de 20 a 29 anos, estão na mira dos homicídios no estado. A taxa de homicídios encontrada pelos pesquisadores da Rede de Observatórios da Segurança surpreendeu a eles mesmos, inclusive aqueles que pesquisam a violência há décadas.

Na Bahia, em 2018, de acordo com dados do DataSUS, a taxa de homicídios de jovens negros para cada 100 mil habitantes foi de 236. O número é mais de quatro vezes superior à taxa de homicídios para jovens brancos com a mesma idade - de 20 a 29 anos. E ambas as taxas são muito superiores à média nacional no mesmo ano, de 27,2 para cada 100 mil.“Esse é o dado mais chocante que eu já apresentei em 30 anos de estudos de violência. A cara do racismo no Brasil é essa, em todos os aspectos”, afirmou a cientista social Silvia Ramos, coordenadora geral da Rede de Observatórios da Segurança.Para o historiador Dudu Ribeiro, coordenador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD) e do Observatório da Segurança na Bahia, os dados analisados não são novidade. “Aqui na Bahia, a gente consegue perceber algo que não é novo, uma disparidade racial no número da violência”, aponta. Para ele, o que fica claro é que o racismo não é um crime que pode ser colocado numa ‘caixinha à parte’. Pelo contrário, ele se mostra presente em diversas formas de violência.

O sociólogo César Barreira, Coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC), tenta dar conta desse cenário: “Eu gosto muito de usar o termo de que existe uma violência difusa, mas ela continua tendo vítimas preferenciais. Ela é difusa porque continua podendo atingir todos nós, mas existe a vítima preferencial, que é o jovem negro da periferia. E as mulheres também têm essa mesma marca”.