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Nelson Cadena
Publicado em 18 de junho de 2020 às 05:00
- Atualizado há um ano
Em abril de 1876 os leitores de São Paulo conheceram o Polichinello, semanário fundado pelo abolicionista baiano Luiz Gama - domingo próximo se celebram 190 anos de seu nascimento - periódico ilustrado pelo lápis de Nicolau Huascar de Vergara. Circulava com oito páginas, quatro de texto tipográfico e quatro impressas em litografia, a última homenageava vultos da história brasileira e autoridades e personalidades do Império.
O propósito do Polichinello era fazer rir, através de uma crônica semanal inspirada numa releitura do noticiário da imprensa diária e nas próprias fontes de Gama que já era um advogado bem sucedido e bem relacionado. A sátira e a ironia eram elementos sempre presentes na crônica. O bom humor se evidenciava em várias seções, dentre as quais Nomes e Definições que nada mais era do que um dicionário Gama, com a sua interpretação muito peculiar. Definia biografia como “a água lustral em que muitas vezes o talento avassalado lava os cadáveres poluídos”. E virtude como “descendente da boa moral e prima irmã da hipocrisia”.
Imposto era para Gama o “meio de extorquir dinheiro dos laboriosos para distribuir pelos vadios” e cartório a “drogaria tenebrosa onde, de ordinário, se manipulam as substâncias amargas”. Definia advogado, sua profissão, como “homem do pró e do contra. Qualquer das partes terá razão, com a simples condição de ser sua constituinte”. Via a igreja como “um misterioso palco de prestidigitação no qual a ignorância curva-se perante a astúcia, implorando carta de guia para o céu”. Pudor era a “expressão que avulta nos lábios dos homens corrompidos”. Definia casa de correção como “asilo forçado dos presos menos perigosos; porque todo o mal provêm dos que ficam fora” e negro como “homem preto por fora; o contrário de muitos brancos que são pretos por dentro”. Pobre era “virtuoso à força, que ardentemente deseja o bem da humanidade, porque não lhe custa dinheiro”.
O machismo cultural, como em todos os homens de sua geração, estava presente nos seus axiomas à respeito da mulher: Dizia que mulher feia e peças de artilharia eram coisas idênticas; as moças bonitas envenenavam pelo perfume; viúva rica era como osso para os cães famintos; comparava o amor das mulheres com essências raras: sutil e volátil; homem que se apaixonava por mulher feia e velha era igual a um suicida; dizia dos homens que idolatravam mulheres feias que deviam sentar praça de artilheiro; bailes de mascarados eram “os prediletos das mulheres feias”. E comparava a tempestade com as mulheres ciumentas.
Em contrapartida ao bom humor, o mau humor de Gama se fez patente em uma atitude que não teve similar na imprensa brasileira, que eu conheça: próximo de fechar o primeiro trimestre de circulação do Polichinello, cobrou, polidamente, as assinaturas não pagas; continuou, respeitosamente, nas edições seguintes. Sem paciência, ameaçou publicar o nome dos caloteiros. Essa ameaça todos faziam, mas ninguém levava até as últimas consequências. O Faisca na Bahia (1888) chegou a publicar a relação dos devedores, pela metade. Encomendou uma ilustração que mostrava um garoto descerrando um pano; apareciam os nomes e duas ou três letras do sobrenome e ameaçou descerrar o pano por completo, na edição seguinte. Não teve edição seguinte, deixou de circular.
Luiz Gama, em 07/09/76, cumpriu a promessa e publicou, “por consideração”, apenas doze nomes completos dos devedores, avisando que publicaria mais doze na semana seguinte e assim por diante. Ficou na primeira leva. Sabe-se lá a reação de seus assinantes, certamente sofreu pressões e preferiu deixar as coisas como estavam. Não mais tocou no assunto.
Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras