O Carnaval do Príncipe

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  • Da Redação

Publicado em 3 de março de 2019 às 12:00

- Atualizado há um ano

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Nem vou tentar enganar você. Esse aqui não é um texto sobre Igor Kannario. Mas, também, tenha sua calma. Não precisa correr apressadamente para fechar o link do Correio e bradar a mais de mil decibéis que foi enganado em pleno domingo de Carnaval.

O título dessa coluna, admito, foi pensado ardilosamente para calotear o leitor. Kannario, deputado federal (PHS) e autodeclarado “Príncipe do Gueto”, puxa uma das maiores pipocas nesses dias de baderna instalada na cidade. Sua presença, desde 2015, é notícia pela quantidade de gente arregimentada, numa época na qual cantores de trio já não arrastam mais aqueles enormes batalhões.

No entanto, informo a quem resistiu a estes dois primeiros parágrafos de puro baratino e trapaça, houve um outro príncipe, dois séculos antes, mesmo sem se fazer presente, deu a Salvador um de seus maiores carnavais de rua que se tem notícia.

Estamos em 1817. A cidade da Bahia tem pouco mais de 100 mil habitantes, 36 igrejas e se estende, ao norte, até a Soledade. Ao sul, o limite vai até o Forte de São Pedro, com a Vitória, Graça e Porto da Barra como locais de chácaras e pontos de pesca. Já havia edifícios altos, com até cinco sobrados, diferente do Rio de Janeiro, com suas casas térreas. Salvador tinha se desenvolvido muito desde 1808, quando as três naus, uma fragata e um bergantim aportaram trazendo a família real portuguesa de Dom João VI, fugindo da ação expansionista de Napoleão.

A família real ficou aqui só por um mês. Tempo suficiente para importantes mudanças na cidade: a criação da Escola Médico-Cirúrgica no Terreiro de Jesus (núcleo da Faculdade de Medicina da Bahia), concessão da licença para a construção de uma fábrica de vidro, outra de pólvora (até então proibidas) e fortalecer a defesa militar de Salvador – além da assinatura da abertura dos portos para as nações amigas, no ato da chegada, desfazendo o pacto de exclusividade de três séculos com Portugal. No dia 26 de fevereiro, a esquadra manobrou na baía de Todos os Santos e rumou para outra baía, a da Guanabara, no Rio de Janeiro.

Só luxo Depois de brevemente recriar o cenário de nossa história, voltemos ao que nos interessa: o carnaval. Em 13 de maio de 1817, o filho primogênito de Dom João VI, Dom Pedro (futuro patrono da independência e primeiro imperador do Brasil), casa-se com a arquiduquesa Maria Leopoldina, uma legítima Habsburgo da família imperial austríaca. O casamento foi em Viena e por procuração, porque Pedro não esteve presente. Na ausência do cônjuge, sobrou luxo. A festa de matrimônio foi tão pavoneada que, durante anos, a expressão “casamento à brasileira” virou sinônimo de exibicionismo e ostentação lá no país europeu.

Casada, Leopoldina zarpou para o Brasil singrando o Atlântico numa viagem de 82 dias. Ela tinha 20 anos. Pedro, 19. Os informes da chegada da arquiduquesa movimentaram a província da Bahia, então sob o comando do governador-geral Marcos de Noronha e Britto, que atendia pelo epíteto de Oitavo Conde dos Arcos.

Noronha e Britto era um nobre português a serviço da corte. Para agradar Dom João VI e seu mancebo recém-juntado, organizou um enorme evento em homenagem. O edital foi publicado em setembro no jornal Idade D’Ouro do Brazil (primeira gazeta impressa na Bahia). A convocação era para que os moradores, tanto da Cidade Alta quanto da Cidade Baixa, enfeitassem suas janelas com luminárias onde fosse passar o cortejo do casamento real. Detalhe: Leopoldina só viria a chegar ao Brasil em novembro, sem sequer aportar em Salvador. E Pedro, tampouco, participaria do convescote baiano.                 

Ainda assim o evento foi portentoso. Depois do cortejo, passando pelas casas iluminadas, teve um ato religioso na Sé Catedral. Por fim, um baile de máscaras, na rua, com os foliões aproveitando até o raiar do dia seguinte. Assim registrou o redator da Idade D’Ouro sobre o festival de núpcias: “ricas e engraçadíssimas farsas por todas as ruas, cantorias noturnas etc”. No forte de São Pedro ainda teve espetáculo de touros com parte final do evento.

As festas Naqueles dias de 1817, duas eram as festas de rua de maior prestígio e vigor em Salvador. A de Corpus Christi e Senhor do Bonfim. Outras, que viriam a compor o calendário de festividades populares da Bahia, ainda não tinham sido institucionalizadas ou mesmo criadas (Iemanjá, Conceição da Praia, Santa Bárbara, Bom Jesus dos Navegantes).

As outras grandes celebrações da cidade eram honrarias aos membros da família real. E isso tinha um alto custo ao tesouro. O aniversário da Rainha Maria I foi comemorado com pompa em Salvador, bem como as orquestras para celebrar cada natalício de Dom Pedro, nos meses de outubro. Quem bancava as solenidades era a Câmara, com menor participação do governador. Mas, do bolso dos habitantes, também saía um suntuoso quinhão. Para iluminar as janelas no cortejo real, os soteropolitanos tiveram que comprar luminárias na Fábrica de Vidros, que pertencia à corte portuguesa. A fábrica chegou a vender 80 mil peças em só um dos aniversários de Dom João VI.

A festa era do príncipe, mas a conta ficava com a plebe. Naquele mesmo ano de 1817, em março, eclodiu a Revolução Pernambucana. Um dos motivos da revolta eram os custos para bancar a família real no Brasil. Mas essa é uma outra história. Por enquanto, o carnaval chegava ao fim.

Fontes de pesquisaD Pedro I: um herói sem nenhum caráter. LUSTOSA, Isabel. Companhia das Letras, 2006.   A primeira gazeta da Bahia: Idade d'Ouro do Brasil. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Edufba, 2011. História da Bahia. TAVARES, Luís Henrique Dias. Edufba, 2001.