O chamado da estrada

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  • Paulo Sales

Publicado em 14 de março de 2022 às 05:00

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Anteontem, o escritor que mais mexeu com o meu imaginário teria feito 100 anos. Nascido em Lowell, Massachusetts, no dia 12 de março de 1922, Jack Kerouac foi um importante guia espiritual e mentor comportamental em um período crucial da minha vida: os anos de formação, quando aquilo que somos na essência começa a se sedimentar.

Hoje, grande parte do discurso contido em seus livros não me cala mais fundo como antes. Mas sua importância ainda é avassaladora, e não só para mim. On the Road, sua obra maior, representou ao lado de Uivo (Allen Ginsberg) o grito primevo de uma nova geração literária, o movimento beat. Surgido em meio ao vazio do pós-guerra, o livro tornou-se um sucesso imediato e alçou o autor à condição de celebridade.

Todos queriam ler e imitar a sua prosa espontânea, recheada de fluxos de consciência que se assemelhavam a fraseados do bebop, a intrincada subversão do idioma jazzístico protagonizada por Bird e Dizzy. Todos queriam viajar de carona pela vastidão do território americano como faziam Sal Paradise (alter ego de Kerouac) e Dean Moriarty (pseudônimo do seu amigo Neal Cassady).

Involuntariamente, Jack se tornou um modelo de comportamento. Logo ele, que queria ser reconhecido como um grande romancista, da mesma linhagem de Wolfe e Melville. A imagem que a posteridade guardou foi outra: a do sujeito impetuoso que borrifou vida por todos os poros, legando ao mundo obras impregnadas de reminiscências pessoais.

Kerouac não foi um precursor e entusiasta do movimento hippie, ao contrário de Ginsberg e William Burroughs, os outros vértices da geração beat. Era um homem católico e conservador. Havia em sua obra um otimismo essencialmente cristão em relação à humanidade. Em um trecho do seu diário, implorou a Deus: “Atinja-me e vou soar como um sino”.

A maioria dos leitores que se debruçaram em massa nas páginas do On the Road – e também em obras como Big Sur, Os Subterrâneos, Viajante Solitário ou Os Vagabundos do Dharma – não percebeu que, com suas aventuras mundanas, Kerouac queria atingir o sagrado.

Jack despediu-se do mundo em 1969, vítima de hemorragia abdominal, aos 47 anos. Muito antes, já havia se recolhido em casa para morrer lentamente, consumindo vinhos baratos e escrevendo poemas inspirados na tradição oriental. Seus livros eram dificílimos de encontrar por aqui. Edições esgotadas da Brasiliense, que fui garimpando em livrarias e sebos ao longo dos anos. Lembro da felicidade que senti ao adquirir o meu exemplar de Os Subterrâneos, junto a um vendedor de livros usados em São Paulo.

Já vai longe o tempo em que fui influenciado por sua obra e principalmente pela vida que ele levou. Uma época em que eu escrevia bobagens como “As estrelas são as lâmpadas da minha casa” ou “A felicidade está contida no vento frio das auto-estradas”. Esse tempo, porém, foi fundamental na minha formação.

Durante um período, adorei emular o estilo de vida estradeiro, passando horas infindáveis dentro de ônibus sujos e pegando caronas em caminhões. Via o sol indo embora, velhos surgindo na margem das rodovias, casebres sem cor. Conheci pessoas interessantes, li muito enquanto as horas escorriam e me confrontei com meus medos, saindo mais forte e maduro dessas viagens.

A solidão na estrada encerra uma melancolia que pode ser nociva, sobretudo se você estiver fragilizado emocionalmente ou fisicamente. Recordo momentos em que, completamente sozinho em cidades estranhas, eu me via falando comigo mesmo e retrucando o que acabara de dizer.

O saldo de todas essas experiências é positivo. Ainda hoje cultivo o desejo de conhecer pessoas e lugares distantes, embora saiba que dificilmente irei ao Tibet ou ao Quênia, por exemplo. Ou mesmo a alguma cidadezinha perdida onde encontraria o sentido da existência. Às vezes, na noite alta, sinto um vento frio batendo no rosto, mesmo com a janela fechada. Quem sabe não é o espírito do velho Jack me chamando para dar uma volta?