O cigano Melquíades e o sorriso da hiena

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  • Elieser Cesar

Publicado em 7 de agosto de 2019 às 05:01

- Atualizado há um ano

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Num trecho de Cem anos de solidão – o romance do colombiano Gabriel Garcia Márquez, que faz chover na imaginação do leitor, - o cigano Melquíades retorna à casa dos Buendía, depois de muito tempo sumido. Todos ficam intrigados com o incrível rejuvenescimento do velho amigo, visível numa boca antes murcha e, agora, cheia de dentes e iluminada por um sorriso mágico. No lar dos Buendía todos se encantaram com a metamorfose plástica do ancião que trazia para a Macondo as maravilhosas novidades do mundo e dos sábios dos quatro canto da Terra, como um pedaço de ferro que tinha a faculdade de atrair as panelas e fazer os parafusos se despregarem das porcas. Na verdade, o que ninguém sabia era que o novidadeiro Melquíades usava um prótese dentária, das mais ordinárias, como aquelas dentaduras postiças que, na hora de dormir, as tias velhas colocavam de molho num copo de água, para o espanto das crianças.

Deixando o terreno empolgante da ficção para a realidade mais tacanha, é de se imaginar que o deputado federal Pastor Marcos Feliciano (Podemos-SP) – o nome do partido remete à piada pronta – esteja desfrutando do mesmo sorriso intrigante e mágico de Melquíades, depois de sua farra odontológica paga com dinheiro público. Não é que a Câmara dos Deputados, que já coloca à disposição dos 513 parlamentares um quadro de saúde de fazer inveja a muitos hospitais públicos e até privados (70 médicos de 17 especialidades) acaba de reembolsar Feliciano (agora ainda mais feliz com o novo frontispício bucal) em R$ 157 mil por um tratamento odontológico?!

O parlamentar alegou que como político, pastor evangélico e, portanto, pregador dos bons hábitos e da retidão, tem na boca uma ferramenta fundamental para as funções que desempenha. E esta ferramenta, devemos supor, tem de permanecer azeitada, polida e qualificada para pregar as boas novas e a distribuir a bem-aventurança que se julgam procedentes de uma boca clarividente como a do pastor Marcos Feliciano. Ora, correndo o risco da heresia, diríamos que nem Deus, que desde o sexto dia da criação jamais teve necessidade de sair por aí rindo a torno e a direito, precisaria de um sorriso tão caro.

Na verdade, esta despesa paga com o dinheiro dos contribuintes, muitos dos quais têm que penar nas filas dos postos de saúde para extrair um simples dente, é um acinte ao grande número de brasileiros que têm vergonha de sorrir por falta de dentes (e quando o fazem tapam a boca com a mão num gesto já mecânico de tão repetitivo). Segundo o IBGE, em 2018, 39 milhões de brasileiros usavam uma prótese dentária (um em cada cinco entre 25 e 44 anos), e 16 milhões não tinham um único dente (41,5% com mais de 60 anos de idade). E não temos nenhum motivo para crer que a situação tenha melhorado de lá para cá no país dos desdentados.

Para essas pessoas, o pastor Marcos Feliciano (diante de um hipotético espelho da decência e da moralidade) não exibirá o sorriso mágico e luminoso do sábio Melquíades, mas o esgar de escárnio da hiena que espreita a presa já prestes a virar carniça.

* Elieser Cesar é jornalista e escritor