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O coração emprestado

  • Foto do(a) author(a) Kátia Borges
  • Kátia Borges

Publicado em 28 de agosto de 2022 às 05:30

. Crédito: .

Diz a voz do povo que incutido é pior que doido. Entre esses dois estágios há fino arame estendido sobre o abismo no qual se arriscam os lúcidos. É que só um lúcido, após ponderar demasiadamente, considera ser possível atravessar de um lado a outro e sair ileso, o que já denota certa insanidade de nascença. “Essencialmente equilíbrio. Nem máximo nem mínimo”, como nos versos de Orides Fontela, poeta incutida incorrigível. Ai de mim que levei a semana inteira pensando no coração de um morto.

Sim, incutiu-me a ideia do órgão humano doado em vida para a belíssima cidade do Porto, preservado em formol há 187 anos, que deixou a igreja de Nossa Senhora da Lapa, do outro lado do Atlântico, e veio receber no Brasil honrarias destinadas aos Chefes de Estado. Me refiro ao coração emprestado, histórico, ilustre, separado do corpo, cindido entre dois países. Vejam que, em São Paulo, há um túmulo que abriga os despojos do príncipe regente no Museu do Ipiranga.

Uma semana antes de sua primeira viagem post-mortem, transportado pelos ares em um avião da FAB, o coração de Dom Pedro I foi exibido ao público em um invólucro transparente no salão nobre da Irmandade da Lapa. Mergulhado em um preparado químico, o órgão real flutua entre os séculos, inviolável, impermeável aos ciclos vitais. Num dos registros oficiais que correram o mundo, um senhor careca parece querer confirmar se não há mesmo batimentos, tão perto está da relíquia portuguesa.

Em outra imagem, creio que seja dessa mesma série, divulgada pela Câmara Municipal do Porto, vemos dezenas de celulares acesos nas mãos de pessoas em fila diante do expositor. Certamente, são as mesmas que aparecem sob o Sol, do lado de fora da igreja, abanando-se e aguardando a sua vez. Lembra um pouco a loucura quase carnavalesca que é tentar se aproximar da lendária Monalisa no Museu do Louvre, entre empurrões e acotovelamentos, disputando o melhor ângulo para a selfie.

Mas será que ali ninguém nota estar diante de um órgão humano exposto, fora do conforto do corpo, trancafiado numa urna? Um dos hexagramas do I ching, meu livro de cabeceira, diz que o coração pensa constantemente. Para os orientais, a verdadeira quietude se aloja do lado esquerdo do peito, lá onde o esterno faz a curva. E há tantas metáforas possíveis e impossíveis nessa história toda e, ademais, em nossa própria história, que é capaz de despertar desmensurado incutimento.