O estorvo de cada um

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  • Paulo Sales

Publicado em 22 de novembro de 2021 às 05:05

- Atualizado há um ano

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Deveria existir um equipamento que fosse capaz de mensurar tudo que a nossa mente acumula pelo caminho, ano após ano. Camadas de alegrias, frustrações, traumas, revelações, surpresas, perdas e superações, que vão sendo meticulosamente sobrepostas em nossos espíritos, como uma torre de livros construída displicentemente. Com elas, formamos a nossa matéria-prima. À medida que avançamos, cada livro espremido na parte inferior é essencial para o equilíbrio da torre, que a cada ano fica mais alta e mais vulnerável.

Basta um puxão irresponsável em um dos livros para a pilha toda ir ao chão, provocando atitudes extremas: uma tentativa de suicídio, um ato de desespero ou alguma manifestação de insanidade ou deformação moral. O fato é que está tudo lá dentro, encerrado em desvãos cheios de trastes. Somos produto de nossa memória, embora em alguns momentos seja necessário esquecer para seguir em frente. Mas não esquecemos.

Revi outro dia A História Real, o lindo, afetivo e humanista road-movie de David Lynch que ainda hoje encontra eco em meu coração. Há nele uma cena da qual não me recordava e que é essencial para a trama. É quando o velho viajante Alvin (Richard Farnsworth) confessa – a um homem idoso como ele e ex-combatente de guerra como ele, portanto apto a entender sua angústia silenciosa – que matou por engano um estimado companheiro de exército durante uma batalha na Segunda Guerra.

Só ali, naquele momento, uma outra pessoa além do próprio Alvin ficou a par desse episódio. Ele precisou de mais de 50 anos para tirar dos ombros um estorvo que o marcou durante todo esse tempo. Um estorvo que provavelmente contribuiu de forma decisiva para que se entregasse ao álcool e à melancolia (a atuação de Farnsworth, que se matou logo após o encerramento das filmagens, ao saber que tinha um câncer incurável, só faz acentuar o peso desse fardo).

Essa é apenas uma sequência rápida em uma obra-prima recheada de grandes cenas e diálogos. Mas ela é fundamental para se entender a personalidade de um homem que, para reencontrar o irmão com quem brigara décadas antes, sai viajando pelas estradas americanas a bordo de um cortador de grama.

Na mesma cena, Alvin ainda comenta: “No final da guerra já estávamos matando garotos”, referindo-se aos meninos alemães recrutados nos estertores do nazismo para morrer no front. Mas o próprio Alvin era também ele um garoto, despejado em algum confim da Europa ou da Ásia para vivenciar o aniquilamento da própria inocência.

Ninguém sai imune de uma guerra. Talvez seja a experiência mais próxima do que se entende por inferno. Quando assistimos a esses documentários sobre massacres cometidos no Vietnã ou no Iraque, percebemos que seria quase impossível não haver excessos por parte dos invasores. São apenas garotos, equipados com armamentos que mal conseguem sustentar, entregues ao ato de dizimar seres humanos como se brincassem com soldadinhos de chumbo.

Culpa, loucura, devastação moral. Filmes como O Franco Atirador e Além da Linha Vermelha falam disso com propriedade, assim como o romance de estréia de Norman Mailer, Os Nus e os Mortos. Em A História Real, esse é apenas mais um ingrediente que nos ajuda a compreender a desdita de Alvin e sua imperiosa necessidade de redenção.

Voltando à imagem da torre de livros, é como se alguns volumes dessa pilha fossem os nossos preferidos, aqueles que levamos conosco ao longo dos anos e que relemos de tempos em tempos.

Sabemos de cor parágrafos inteiros e recordamos cada palavra, dita ou não dita. Porque estamos todos de alguma forma agrilhoados ao passado, como Alvin e o seu segredo repleto de remorso. Não importando se o avançar dos anos acrescentou novas camadas de sentimentos e esmaeceu as cores do que ficou lá atrás.