O estupro é estruturante na sexualidade do povo brasileiro

Desta vez, vazou vídeo da audiência na qual era ele o réu, mas ela é que foi julgada

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 8 de novembro de 2020 às 11:39

- Atualizado há um ano

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Passei os últimos 15 dias longe de tudo que é coisa ruim. Voltei com o caso da moça que o rapaz estuprou “sem querer”, esse crime “sem provas”, porque sêmen e sangue não significam nada, diante das fotos nas quais ela aparece em poses sensuais. Estas, sim, provas irrefutáveis de consensualidade para qualquer “sexo” que qualquer homem, porventura, quisesse lhe oferecer. Como sabemos, se uma mulher existe e se exerce, “vagabunda” é. Desta vez, vazou vídeo da audiência na qual era ele o réu, mas ela é que foi julgada. Felizmente, isso despertou a ira de uma galera e as coisas devem se resolver. Nesse caso, com o qual não estou mais preocupada.

(E do qual não conheço todos os fatos, claro, mas nos serve de exemplo contundente de nossos modos, costumes e lugares sociais.)

O que me interessa, agora, é o (recorrente) papo de “monstro” direcionado a esses caras e isso extrapola uma história individual. Toda vez que uma coisa assim acontece, fazemos um favor à manada, retirando do conjunto quem age como a maioria, com a diferença de que chegou aos finalmentes e, de alguma maneira, foi flagrado. Se é “monstro”, se “estupro não é sexo”, se é “doente” e “aberração”, significa que é exceção e isso não é verdade. Até entendo o conforto da sensação de que tirando de circulação, se limpa a área. Mas, repare: desde a invasão portuguesa, passando pela lenda do boto e fábulas infantis, chegando ao que se canta (toca e dança) nos pagodões e paredões, o estupro, especialmente de mulheres e crianças, é algo que temos institucionalizado. Literalmente, até. Lembra? Já chamamos de “débito conjugal”. Um troço que, mesmo que fosse mútuo, seria muito estranho. Pior ainda quando a gente sabe quem é que abre as pernas, muitas vezes, apenas, “pra não perder o macho”. 

(Mas isso já é um outro papo.)

Dia desses, meu filho me perguntou: “mãe, você já foi estuprada?”. Respondi que não, mas fiquei com essa pergunta aqui. Passei um tempo e nem voltei pra dizer a ele que sim. Olhando pra trás, com a percepção que tenho hoje, é claro que já. Inclusive, acho difícil que alguma mulher que eu conheço não tenha, em algum lugar, esse machucado. Mulher transando com nojo ou, no mínimo, sem vontade, é algo “natural”, na nossa incivilidade. E aí, da mais simples indelicadeza até o crime com sangue (muitas vezes, morte) e tribunal, é apenas uma questão de gradação, de nível de violência e de exposição dos fatos.

André de Camargo Aranha, o provável estuprador de Mariana Ferrer, é só um cara. Comum, comuníssimo. O advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho e o juiz Rudson Marcos (que absolveu o provável estuprador por “falta de provas”) são apenas a galera que diz “pô, tava pedindo”, ri, olha pro ouro lado e a gente quase tem certeza de que isso significa “eu faria igual”. O advogado que a “defendia” é só essa gente que diz “nossa, coitada, né?” e nada faz. Aquela audiência me lembrou as aulas de história do ensino médio nas quais éramos convidados a interpretar personagens que traziam, em si, toda uma lógica coletiva. Um debate de ideias personificadas, saca? Sendo que, no caso do julgamento de Mariana (sim, a vítima é que foi julgada), ela, o contraditório, não era sequer considerada além de estar, em si, frágil. Perfeita alegoria. É exatamente assim que acontece, na nossa realidade.

Entenda: o estupro faz arte da nossa vida sexual. Talvez, se pasmar com casos como o de Mariana traga, até, um tanto de hipocrisia. Penso “nossa, jura que você não sabia?” a cada comentário de quem acha estranhíssimo que uma mulher seja dopada e estuprada, que pais estuprem as próprias filhas, que volta e meia seja realizado o desejo sexual por incapazes. Tudo isso está embrionário - porém explícito - em nossa narrativa, na pornografia que produzimos e consumimos, em nossos adereços, em nossas (filmadas, dançadas e cantadas) representações de fantasias sexuais coletivas. O estupro é estruturante na sexualidade do povo brasileiro.

Estupradores e cúmplices não são “os outros”. Somos nós. É sexo, sim. É o sexo que, historicamente, sabemos fazer. O jogo é esse, sempre foi. E só muda quando (se um dia) a gente conseguir educar homens para que seus pintos só subam diante de grandes, acolhedores e imensos “sins”, ainda que efêmeros e eventuais. Mas essa é uma construção profunda. Desde sempre e por enquanto, somos caça e nossos “nãos” seguem servindo, na maioria das vezes, apenas para excitar.

(“Quando mulher diz não, quer dizer talvez. Quando diz talvez, quer dizer sim” – domínio popular)

É uma das nossas especialidades produzir, aos montes, homens desgraçadamente infelizes e disfuncionais, na nossa fábrica de gente troncha. É isso que transborda, é para a doença coletiva que eu escolho olhar, muito mais do que para um indivíduo, em especial. No ninho deles, há muitos mais. André é, provavelmente, só mais um estuprador escroto, um tipo comum. Um cara que não se sente desejável, que não é capaz. Um capado, entre tantos, como muitos dos que conhecemos. Um impotente no sentido mais amplo que essa palavra pode ter. Alguém que goza com a negação, numa sexualidade vinculada a domínio, submissão do outro e exercício de poder. Desta vez (como em tantas), transbordou. Mas ele é a regra, se você quer saber. Essa que a gente nega, porque dói, mas sabemos real. Essa que, quando você diz “mas nem todo homem”, apenas se confirma, agora, sim, com o conceito de “exceção” colocado em seu exato lugar.