O funeral de Genésio

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  • Nelson Cadena

Publicado em 11 de novembro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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No dia em que Genésio completou 80 anos de idade, após soprar a última das velinhas do bolo pirotécnico, se deu conta de que tinha chegado a hora de cuidar do futuro, que se a Deus pertence, não custa uma mãozinha. Genésio compreendeu que tinha deixado para atrás a afoiteza dos vinte anos, a dúvida quanto à máxima de que a vida começa aos quarenta, a humilhação do carimbo de idoso social aos sessenta e a pecha de terceira idade. Genésio entendeu que aos oitenta é hora de cuidar do futuro, aqui, nesta terra abençoada, e no outro plano, e começou a fazer contas.

No dia de seu aniversário soprou as velinhas na companhia da esposa, filhos e netos, sorriu em todas as selfies, encolheu a barriga para não denunciar o desleixo da falta de exercício e excessos da gula, bebeu três copos de vinho, saboreou uma paella no capricho; à noite conferiu o Facebook, respondeu todas as mensagens, algumas por sentimento, outras por educação, exatas 326. Agradecido pela lembrança dos parentes e amigos, a expressiva audiência, montou uma planilha Excel no computador, quatro colunas, desde já organizando a plateia de seu funeral. Cuidar do futuro.

Genésio não tinha previsão de quando chegaria a hora de partir, não seria tão cedo, de modo que criou um algoritmo de 15% para abater da conta final das mensagens no Face e outro de 20% da conta dos que não usam as redes sociais para essa etiqueta por entender que é gente da maior idade, maior do que a dele, Cruz Credo, repeliu o pensamento. O algoritmo excluiria os que nesse meio tempo deixariam este mundo. Na primeira coluna listou os convidados por obrigação, passou a encarar dessa maneira, para o dia de seu funeral: a família mais próxima, entes queridos e outros nem tanto, em todo caso família. Precavido criou um algoritmo de 5%. Obrigação não é compromisso.

Na segunda coluna listou os companheiros e ex-companheiros de trabalho, resumiu o perfil de cada um a partir de sua experiência e de uma varredura nas suas redes sociais; mediu o grau de sentimento através dos comentários nos posts de luto; avaliou a sua solidariedade nas horas difíceis e, prudente, grifou de amarelo os puxa sacos, os arrependidos das armações corporativas e os eternos pessimistas, melhor prevenir. Ao lado do perfil listou telefones e e-mails e outras ferramentas de apoio à família a quem caberia avisar a tempo local e hora do velório e sepultamento.

Na terceira coluna relacionou os amigos, os classificou como amigos de mesa de bar; amigos de infância e por tanto eternos amigos; amigos de farra; amigos de churrasco; amigos da casa; amigos somente no Face. Teve o cuidado de evitar superposição, para não alterar os algoritmos. Amigos que se enquadravam em mais de uma categoria, Genésio listou numa de sua escolha, a que lhe pareceu mais adequada. Na quarta coluna, relacionou as ex-namoradas, ex-mulheres, as que amou ou imaginou amar, e as que tinha certeza o amaram e se abriu mão de criar codificador de exclusão é porque atentou que aos 80 anos ainda desconhecia os segredos e caminhos e descaminhos do amor.

Todo ano Genésio atualizava as suas planilhas de Excel. A dificuldade maior era saber se quando falecia um dos prováveis convidados a seu funeral deveria apagar da lista, grifar de vermelho, ou apenas confiar no algoritmo. Nessa confusão de contas, enquanto se esforçava em definir um numeral para um enterro digno, adoeceu e morreu de Covid. O administrador do cemitério permitiu quatro pessoas da família no seu funeral e mais dois carregadores do sepulcrário para dividir o peso do caixão. Emperiquitado de pó de arroz, a caprichada maquiagem ninguém apreciou, o protocolo sanitário exigiu o lacre do esquife.  

* Nelson Cadena é publicitário, jornalista e escreve às quintas-feiras