O gesto do presidente, no mínimo, fere o Poder Familiar

Você não pode arrancar a máscara do rosto de uma criança porque assim determinaram as vozes da sua cabeça

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 26 de junho de 2021 às 06:15

- Atualizado há um ano

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Há quem discorde de que colocar bóias nos braços de crianças, em piscinas ou no mar, seja adequado. Para alguns, o equipamento dá uma falsa sensação de segurança aos/as pequenos/as. Mas que tipo de pessoa tira bóias dos braços dos filhos dos outros, sem autorização? Não conheço. Há quem ache que redes de segurança nas janelas de apartamentos fazem com que crianças não aprendam a se defender do perigo da altura. Mas que tipo de gente arranca redes de proteção da casa de outras pessoas? Nunca ouvi falar. Há quem ache que máscaras são desnecessárias, mesmo durante uma pandemia de vírus respiratório. Mas que tipo de gente tira a máscara de um menino desconhecido, no meio de uma aglomeração? O presidente do Brasil.

Você viu? Agora, aqui, não importa em quem você votou nem o que você acha sobre "fazer arminha" com as mãos, compra de vacinas ou lockdowns. Sequer importa o que você pensa sobre o uso de máscaras de proteção biológica. Vamos olhar apenas para essa cena, repetida à exaustão, em todos veículos de imprensa: Jair, o homem que ocupa, neste momento, o cargo mais alto do país, pega uma criança no colo e arranca a máscara do garoto, no meio de uma multidão, sem sequer consultar o/a adulto/a que colocou o EPI no menino e, em um gesto de confiança, o entregou em suas mãos. Esse é o fato, não é "fake news", não é fofoca de Whatsapp nem opinião, nem tem "viés ideológico" algum. Procure o vídeo, assista e se pergunte, com honestidade: ele tinha esse direito ou não?

O gesto do senhor presidente fere, no mínimo, o Poder Familiar, direito e obrigação de proteção que as famílias têm, em relação aos filhos e filhas. Ainda que de maneira frágil (que pai ou mãe responsável leva uma criança, neste momento, para uma aglomeração?) o adulto que estava com aquele menino exercia seu direito e dever de proteção, ao mantê-lo com uma máscara no rosto, naquela situação. Nenhum cargo, nenhum resultado em urnas (eletrônicas ou não), nenhum alinhamento ideológico, nenhum parentesco secundário ou qualquer patente autoriza qualquer pessoa a desrespeitar os cuidados escolhidos por uma família, em relação aos/as próprios/as filhos/as.

(Principalmente, se é um cuidado recomendado no mundo inteiro, um consenso entre cientistas. Você não pode destravar o cinto de segurança ou arrancar a máscara do rosto de uma criança porque assim determinaram as vozes da sua cabeça.)

(Improvável, mas vamos supor que o responsável pela criança tenha autorizado a retirada da máscara, ali, em uma fração de segundo que as câmeras não captaram. Ainda assim, sobraria o imenso significado simbólico. Observe: justamente quando se descobre (e a imprensa internacional já publica) que a variante Delta pega, em cheio, crianças e adolescentes, no momento em que os EUA correm para vacinar esse público, o presidente da república TIRA A MÁSCARA DE UMA CRIANÇA, no meio de uma aglomeração. Por que? Com que intenção?)

Escrevo lentamente, medindo e pesando as palavras. Não por nada. Apenas não me interessa chover no molhado, pregar para convertidos, repetir palavras de ordem. Inclusive, ando cansada. Não se trata disso. A intenção, aqui, é, apenas, chamar a atenção para uma oportunidade. Ao ver e rever essa imagem, qualquer pessoa, de qualquer postura política, pode ter acesso à compreensão do absurdo coletivo que vivemos, neste momento. É furo na Matrix. Não precisa saber nada de antes, nenhum outro acontecimento de agora. Só essa cena. Só ela já é uma história inteira. Você consegue ver?

Não se trata mais de política partidária, propostas para a economia, relações internacionais, direita ou esquerda. O desembarque é de quem tem qualquer noção. Agora, destituir esse indivíduo do poder de influência que tem, significa a tentativa de salvar nossos/as filhos/as da morte e, evidentemente, resgatar a humanidade em cada um/a de nós. Sejamos aliados ou adversários em um futuro próximo, dentro dos limites da saúde social e normalidade democrática. Agora é outro assunto. Limite. Emergência. Tem sido, inclusive, acordar todos os dias com o espanto de Brecht quando pergunta "que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?".

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