Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.
Jorge Portugal
Publicado em 24 de setembro de 2019 às 09:53
- Atualizado há um ano
Saí hoje, num belíssimo dia de sol de quase-primavera disposto a contar os azuis de Itapuã. Fiz isso inspirado por Dorival Caymmi que, em famosa carta feita para Jorge Amado (morando em Londres então) assegurou que ele (Caymmi) e Caribé, andando pelas ruas de Salvador, para sentir os cheiros e cores, chegaram a contar 15 diferentes azuis. Eu, sem a sabedoria de ambos, só consegui identificar quatro.E já me dei por satisfeito.
Aliás, essa celebre carta, escrita em 1975, é uma espécie de Bíblia para mim. Leio e releio incontáveis vezes e me certifico a cada vez que Caymmi é o nosso grande “Buda Nagô”, como o nominou o mestre Gil.
Genial como confeccionador de canções – grande pintor também – Caymmi é a viga-mestra de mais criativa linha da MPB, começando por ele mesmo, passando por João Gilberto, e chegando a Caetano e Gil. Se o samba é a nossa expressão musical maior, no Brasil e no mundo, foi Dorival o responsável maior pela façanha, explodindo da voz de Carmen Miranda “O que é que a baiana tem?”, sucesso retumbante em todo o planeta.
Mas há um Caymmi mais genial ainda, que é o Poeta. Aquele que transformou suas letras em aquarelas escritas, em cortes e em descomplicações psíquicas, que tornam nossas almas mais leves e a vida mais simples e rica.
Veja bem: “A jangada saiu com Chico Ferreira e Bento/ e a jangada voltou só/ Com certeza foi foi lá fora algum pé de vento/ e a jangada voltou só”. Em nenhum momento ele cita explicitamente o fato trágico acontecido. E nos dá pistas, através da elipse e da anáfora “ e a jangada voltou só”. Ora, você que ouça e conclua o que de fundo deve ter acontecido. Com isso ele “convida a nossa inteligência” a ser parceira dele, a “preencher” a lacuna do que ele não disse. É muita generosidade, não é? Só mesmo um Buda...
Outra: “Maurino, Dadá e Zeca ô/ embarcaram de manhã/era quarta-feira santa/dia de pesca e de pescador/Se sabe que o tempo muda/se sabe que vira o tempo/ e aí... o tempo virou/Maurino que é de guentar, guentou/Dadá que é de labutar, labutou/Zeca, esse nem falou/ era só jogar a rede e puxar a rede/era só jogar a rede e puxar a rede”. Mais uma vez, com sua esplêndida elipse, Caymmi nos convida a “preencher a lacuna” poética. Ora, se era só jogar a rede e puxar a rede, o que tinha em abundância dentro da rede?.Ele não revela, mas o título da canção é...Milagre!
Sem complicações, “eu vou pra Maracangalha, eu vou/ eu vou de uniforme branco, eu vou/ eu vou de chapéu de palha, eu vou/ eu vou convidar Anália, eu vou/ se Anália não quiser ir, eu vou só.../ eu vou só, eu vou só sem Anália, mas eu vou!”. Ora, qualquer um de nós, com a cabeça psicanalisada, iria se sentir rejeitado por Anália, perder completamente a vontade de viajar, marcar sessão extra com o terapeuta pela recusa afetiva, mas um Buda-nagô sabe que sozinho é que se é.
Por isso, eu só contei quatro azuis, e ele, mais de quinze!
Jorge Portugal é professor, cantor, compositor e ex-secretário estadual de Cultura
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores