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Kátia Borges
Publicado em 11 de abril de 2020 às 12:40
- Atualizado há um ano
A ideia de voltar a um lugar que não existe me comove. Lembro o que a terapeuta disse sobre a casa pequena onde morei na infância. Tinha sonhos recorrentes de que ainda vivia nela, tempos depois de ter mudado para um espaço mais confortável. Do mesmo modo, contrariando o que recomenda a canção, insistia em permanecer na mesa diante de pratos vazios. Frequentemente, entramos famintos no autoengano.
Na Sexta-Feira da Paixão, atravessamos juntos uma Via Sacra. O perdão do papa, sua caminhada solitária na praça do Vaticano, o número de mortos que joga em nossa cara o pesadelo de uma época. De olhos bem abertos, acompanhamos as notícias. Há alguma esperança para os despertos, dizem os budistas. Aos que dormem, deixe que durmam. A ilusão de controle é o inferno dos capricornianos, não os outros.
Talvez seja a hora certa para deixar que aflore o que há em Vênus no meu signo. A alma livre e positiva de Sagitário. Por ora, damos apenas pequenos passos. Decidimos enfrentar cada dia com a coragem possível. E até nos permitimos sorrir um pouco de vez em quando. De madrugada, conversamos sobre o que vimos, lemos e escutamos. Nossas vozes familiares desenham um abrigo amoroso no escuro.
Nossas vozes familiares que, há poucos meses, discutiam banalidades de privilegiados, algo sobre o melhor roteiro de turismo para as férias de julho ou modelos mais econômicos de ar condicionado. Algumas vezes, fraquejamos e pensamos em como será a vida no futuro. Chegamos mesmo a invejar os sociopatas, sempre impermeáveis à dor do próximo. Rapidamente, voltamos ao presente, o tempo e os números, tudo avançando rentes a pesquisas que nunca avançam o suficiente.
Tento racionalizar culturalmente, a partir do repertório de Segundos Cadernos. Penso que estamos presos na última cena de Clube da Luta, assistindo de nossas casas, através das vidraças, o desabamento do mundo civilizado. Mas onde estávamos? Os índios peruanos rasparam árvores e delas extraíram a substância básica da quinina, o pó que os jesuítas roubaram e levaram para a Europa. A humanidade anda em círculos.
Há risos de crianças no prédio vizinho. Imagino o estranhamento de ter os pais em casa, de repente disponíveis. E o que há de incrível e de terrível no cotidiano das famílias. A violência que engrossa as estatísticas que estudaremos nas aulas de jornalismo. Sim, estudaremos. O horror dos genocídios, a punição dos genocidas. Até que um de nós, ao menos um de nós, tenha aprendido os fundamentos da matemática.