Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Kátia Borges
Publicado em 6 de novembro de 2022 às 05:30
Foi em um novembro como esse que saí para comprar um bolo de aniversário para minha mãe. Ela faria 88 anos. Minha irmã viria com a família inteira mais tarde e eu, mergulhada em trabalho, precisei correr no último minuto para encontrar a padaria do bairro ainda aberta. Sem pensar muito, e quase sem fôlego, montei o que seria nossa última mesa de festa.>
As crianças chegaram, os sobrinhos-netos. Fizemos algumas fotos com a aniversariante. Eu estava exausta e triste, mas pareço feliz nas imagens daquela noite. Registros sorridentes de uma personagem que sinto que não existe mais. Como se houvesse naqueles retratos uma outra pessoa. Qual a expressão no rosto de quem contempla uma tempestade?>
Dizem que os cães conseguem farejar um temporal bem antes que ele chegue. A natureza se esconde em reverência diante dos ventos fortes, até as árvores mais altas encolhem as suas folhas, os bichos pequenos buscam suas tocas, riachos e mares tremem. Nas cidades, insetos invadem as salas dos apartamentos e giram zonzos em torno das lâmpadas. Tudo se espanta.>
Lembro de uma manhã aparentemente ensolarada em que eu caminhava dentro do condomínio. De repente, observei uma chuva densa vindo em minha direção. Ainda estava distante, mas a coluna de água, erguida até o alto como um gigante, avançava decidida. Podia escutar até os pingos, como se fossem passos, tocando a terra. Estanquei, esperei que se aproximasse.>
Então o céu inteiro pareceu desabar, embaralhando horizontes, espargindo petricor. Senti na pele, enquanto a chuva explodia sobre mim, inteira e forte, que nada nunca estaria totalmente sob controle. Nenhuma fuga extraordinária me faria ir muito longe. Não havia abrigo seguro o bastante. Mesmo as pequenas alegrias que, no entanto, criavam uma tensão insuportável.>
É a partir de uma tensão insuportável que também se formam as nuvens mais carregadas, dessas que forjam no firmamento uns desenhos improváveis de anjos e ursos, de pássaros e monstros, e até mesmo do elefante de Drummond, “massa imponente e frágil”. Olho para o céu azul e revisito a cada ano a mesma dor, enquanto a vida reinventa mais um novembro.>