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Paulo Sales
Publicado em 27 de janeiro de 2020 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Na semana passada, pedi uma pizza por aplicativo. Na hora em que o motoboy chegou aqui em casa, o restaurante ligou para ele dizendo que o pedido estava errado. Então o rapaz precisou entrar em contato com o aplicativo, a quem presta serviço. Ficamos na portaria enquanto a situação era resolvida. A ligação para o setor responsável do aplicativo – que mais parece um serviço de telemarketing comum, pela demora e a musiquinha irritante – se arrastou por longos minutos. O rapaz começou a se desesperar ao perceber que estava perdendo várias corridas.>
Conversamos um pouco. Ele disse que mais cedo tinha ido parar num lugar ermo e escuro por conta do GPS do aplicativo. Disse também que, ao aceitar um pedido, não sabe onde fica o restaurante nem o local onde vai entregar o produto. Por fim, resolveu sua vida e eu, a minha. Então subi, aguardei outra pizza e pensei no desamparo de pessoas que, como ele, tornaram-se reféns de uma aberração social enfiada goela abaixo da população.>
Elo mais vulnerável de uma espécie de cadeia alimentar moderna, esse entregador é um típico exemplo do que hoje se vende como um novo tipo de empreendedor. Em teoria, presta serviços para várias empresas, faz seu próprio horário, é dono do próprio negócio. Na prática, não tem nenhum vínculo empregatício e seu tempo disponível é integralmente usado para cumprir uma jornada exaustiva e pouco remunerada. Um atraso como o da semana passada custou a ele algum dinheiro, que provavelmente lhe fez falta. Mas como ficaria sua situação caso adoecesse, se envolvesse num acidente ou sua moto quebrasse?>
Reportagem publicada recentemente no Estadão mostrou que os entregadores de comida via aplicativo – cada vez mais comuns na paisagem urbana com suas caixas térmicas nas costas – em geral trabalham 12 horas por dia e sete dias por semana para fazer, em média, R$ 936,00 por mês. Menos de um salário mínimo, portanto. Caso semelhante ocorre com os motoristas de aplicativo, com suas jornadas de até 16 horas e sua rotina insegura. E com um número cada vez maior de trabalhadores informais, neste novo eldorado de empreendedores miseráveis que virou o Brasil.>
Diante dos nossos olhos se desenrola um empobrecimento coletivo, consequência, entre outros fatores, do eufemismo que atende pelo nome de reforma trabalhista – na verdade uma cruel supressão de direitos adquiridos, como 13º salário, férias e proteção do INSS. Mas o que mais escandaliza nesse cenário é a normalização do absurdo. O discurso de modernidade em nome de uma hipotética geração maciça de emprego e renda, comprado muitas vezes até por quem é explorado.>
Os empregos em massa não vieram e as consequências são palpáveis: pessoas sem segurança profissional não investem em produtos para a família ou para casa, não conseguem poupar ou programar viagens e têm mais dificuldade de obter crédito e comprovar renda. Com isso, ficam praticamente alijadas do mercado de consumo. A desigualdade dispara e a roda da economia não se move – ou se move de forma capenga, deixando de lado uma multidão de párias. Mas, mesmo que ela girasse à toda, seria o caso de se questionar: é justo? É digno? É aceitável? A resposta, nos três casos, é uma só.>