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O país dos empreendedores desamparados


 

  • Paulo Sales

Publicado em 27/01/2020 às 05:00:00
Atualizado em 20/04/2023 às 18:34:04
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Na semana passada, pedi uma pizza por aplicativo. Na hora em que o motoboy chegou aqui em casa, o restaurante ligou para ele dizendo que o pedido estava errado. Então o rapaz precisou entrar em contato com o aplicativo, a quem presta serviço. Ficamos na portaria enquanto a situação era resolvida. A ligação para o setor responsável do aplicativo – que mais parece um serviço de telemarketing comum, pela demora e a musiquinha irritante – se arrastou por longos minutos. O rapaz começou a se desesperar ao perceber que estava perdendo várias corridas.

Conversamos um pouco. Ele disse que mais cedo tinha ido parar num lugar ermo e escuro por conta do GPS do aplicativo. Disse também que, ao aceitar um pedido, não sabe onde fica o restaurante nem o local onde vai entregar o produto. Por fim, resolveu sua vida e eu, a minha. Então subi, aguardei outra pizza e pensei no desamparo de pessoas que, como ele, tornaram-se reféns de uma aberração social enfiada goela abaixo da população.

Elo mais vulnerável de uma espécie de cadeia alimentar moderna, esse entregador é um típico exemplo do que hoje se vende como um novo tipo de empreendedor. Em teoria, presta serviços para várias empresas, faz seu próprio horário, é dono do próprio negócio. Na prática, não tem nenhum vínculo empregatício e seu tempo disponível é integralmente usado para cumprir uma jornada exaustiva e pouco remunerada. Um atraso como o da semana passada custou a ele algum dinheiro, que provavelmente lhe fez falta. Mas como ficaria sua situação caso adoecesse, se envolvesse num acidente ou sua moto quebrasse?

Reportagem publicada recentemente no Estadão mostrou que os entregadores de comida via aplicativo – cada vez mais comuns na paisagem urbana com suas caixas térmicas nas costas – em geral trabalham 12 horas por dia e sete dias por semana para fazer, em média, R$ 936,00 por mês. Menos de um salário mínimo, portanto. Caso semelhante ocorre com os motoristas de aplicativo, com suas jornadas de até 16 horas e sua rotina insegura. E com um número cada vez maior de trabalhadores informais, neste novo eldorado de empreendedores miseráveis que virou o Brasil.

Diante dos nossos olhos se desenrola um empobrecimento coletivo, consequência, entre outros fatores, do eufemismo que atende pelo nome de reforma trabalhista – na verdade uma cruel supressão de direitos adquiridos, como 13º salário, férias e proteção do INSS. Mas o que mais escandaliza nesse cenário é a normalização do absurdo. O discurso de modernidade em nome de uma hipotética geração maciça de emprego e renda, comprado muitas vezes até por quem é explorado.

Os empregos em massa não vieram e as consequências são palpáveis: pessoas sem segurança profissional não investem em produtos para a família ou para casa, não conseguem poupar ou programar viagens e têm mais dificuldade de obter crédito e comprovar renda. Com isso, ficam praticamente alijadas do mercado de consumo. A desigualdade dispara e a roda da economia não se move – ou se move de forma capenga, deixando de lado uma multidão de párias. Mas, mesmo que ela girasse à toda, seria o caso de se questionar: é justo? É digno? É aceitável? A resposta, nos três casos, é uma só.