'O paredão não tem leitura', diz poeta e historiador em entrevista sobre identidade cultural

Poeta de ofício e devoção, o historiador Emílio Tapioca bateu um papo sobre cultura popular e cultura de massa e falou o motivo de ter trocado o ritmo frenético da capital pela paz da Chapada

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  • Da Redação

Publicado em 9 de janeiro de 2022 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo pessoal

"Eu sou um mero poeta de ofício e devoção”. Assim se define Emílio Tapioca, poeta das noites boêmias, becos, carnavais e palcos de Salvador, que descreveu a poesia e a cultura como um só corpo que forma a identidade desta baianidade que luta bravamente contra a chegada do consumo de massa. Há 21 anos resolveu deixar sua vida na capital e decidiu se mudar para Andaraí, na Chapada Diamantina, onde atualmente é diretor de cultura do Município. Procuramos este poeta recluso na natureza para conversarmos sobre identidade cultural, capital x interior, pandemia, políticas públicas e até paredão. 

Quem é: Tapioca é poeta de ofício, tem formação acadêmica em Licenciatura em História, ex-presidente do Conselho Estadual de Cultura da Bahia e atual Coordenador da Câmara Técnica de Cultura do CODETER (Colegiado de Desenvolvimento Territorial) Chapada Diamantina. Atualmente é diretor de cultura do Município de Andaraí, na Chapada Diamantina, onde se mudou há 21 anos. 

De poeta dos becos boêmios de Salvador para um adepto da serenidade da Chapada Diamantina. Cansou da capital? A serenidade da poesia é um arrocho interior, precisa ter aquela coisa do ambiente e tinha algo que queria buscar, mas não encontrava mais na grande metrópole. Costumo dizer que nascer em Salvador é um privilégio. Há um processo histórico complexo e muito rico nesta cidade, com toda sua migração étnica, é um marco de interações de diversas matrizes que só quem nasce em Salvador tem. Não desmerecendo outros locais, mas precisamos continuar lutando pela identidade lírica de Salvador. Identidade é tudo. É preciso defender com unhas e dentes o lugar onde bebeu, conviveu e viveu.  

Perdeu-se um pouco da identidade cultural daquela Salvador, digamos, raiz? Se pensarmos no panorama da cultura de Salvador, não se perde identidade em si. Porém, algumas culturas genuínas na Bahia sofreram impactos com a cultura de massa. Se formos pensar o que era Salvador dos anos 20 ou 30, de Amado e Caymmi, evidentemente perdemos características.  A cultura de Salvador perdeu muito com a cultura invasiva de massa, isso é fato. É uma perda perigosa, mas a velha Bahia ainda existe nos becos e praças. 

E como manter esta memória cultural viva em meio a tanto consumo de massa?Temos uma situação arriscada em Salvador. Estamos perdendo nossas memórias que são ícones da cultura, como Cid Teixeira, por exemplo. É uma perda irreparável, um ícone e patrimônio que preservava nossa cultura. Assim como ele, estamos perdendo tantos outros, como Jaime Sodré, Riachão e Batatinha. Precisamos mergulhar na fonte do saber, pois estamos deixando de valorizar nossa memória e consumindo apenas a cultura de massa. A cultura acadêmica e intelectual bebem do saber popular. Todo mundo perde com a perda desta identidade.A história da Bahia ainda é mal contada? Ou melhor, mal aproveitada? Existem duas situações aí. A história da Bahia ainda não é bem contada porque a educação ainda não entendeu que a cultura faz parte do processo de formação. Ainda estamos presos aos módulos do ensino formal das escolas. Existem muitas histórias sobre a Bahia, verdadeiras ou não, que dão significados a esta nação baiana. Há muito o que contar e pesquisar e estamos perdendo isso. Por outro lado, a Bahia continua sendo bem contada com o lirismo que tem, a sedução que tem, sobretudo agora com o empoderamento das pessoas da periferia, mulheres, negros e comunidade LGBTQI+. Eles estão reescrevendo nossa história cultural, mesmo com todo este negacionismo e extremismo que vivemos no período da ditadura. A cultura é um bem comum a mais de um, é de todos. Não vivemos numa ditadura, mas num período de muito extremismo, como você mesmo disse. Prejudica o livre pensar cultural? Certamente, né? Vivi o enfrentamento da recessão no período militar. Mesmo com toda censura, a cultura na época da ditadura deu um norte sobre o que é cidadania. Agora este momento extremista quer tirar isto novamente. Mas este momento de pressão faz a cultura explodir e estamos vendo isso nas manifestações culturais pelas ruas, assim como vimos na época da ditadura. Não é possível moldar a resistência. Há males que vem pro bem, né? E a cultura cresce ainda mais com a censura. A cultura se reinventa sempre. 

A poesia também se reinventa?A poesia é uma palavra súbita. Ela se transforma a partir do meio em que vive. Por isso falei sobre aquela mudança da capital para me tornar um amante da Chapada. Foi uma reinvenção. A poesia mudou no decorrer dos anos? Ela não muda, apenas segue seu caminho. Ela nasce e renasce do instinto voraz. A gente faz poesia o tempo todo, num olhar, na matéria que você faz, nos versos que escrevo, na letra do hip hop, no tocar de um instrumento, no corpo, ela está no ar. Não importa o formato ou simbologia da poesia. Ela precisa ser capaz de inspirar alguém a seduzir o outro. Se você tem a mínima vontade de se inquietar, a poesia transborda.  A poesia literária é bem intelectualizada. Isso atrapalha sua chegada na camada mais popular? Na verdade, o problema é a falta de acesso à educação básica, né? Não é que a poesia literária seja intelectualizada. O que falta é acesso das camadas menos instruídas a estes códigos e conceitos mais acadêmicos desta palavra. Mas aprendemos que a poesia emana do povo, né? Não tem como dividir as duas coisas. Temos muitos poetas recitando nas ruas, de forma simples, mas fortes. Aprendi poesia e cultura nas ruas. Sou leitor voraz, mas minha poesia se traduz no que vem das ruas, do que vejo e sinto. Os livros possuem o palavreado, mas a rua dá o compasso. O baiano é tão porreta e tem licença poética até para inventar palavras para cada situação. 

As ruas de Salvador te deram este compasso. A Chapada também te deu? Sua poesia mudou junto com o cenário de Andaraí? São dois momentos. Eu vivi e respirei em Salvador intensamente, seja como boêmio, trabalhando com produção, teatro, Carnaval, saraus, de tudo. Aqui em Andaraí tive a oportunidade de ficar mais próximo da natureza. A diferença cultural entre a capital e interior é que a segunda opção se apega muito mais com a ancestralidade. A paisagem cultural muda. Morar na Chapada foi um achado na minha vida, pois me aproximei de uma cultura bem diferente da capital. 

Sente saudade de Salvador? Vou a Salvador com uma paixão imensa, dou um mergulho no mar e já quero voltar [para Andaraí]. Salvador nos consome, né? Muitas vezes nem vejo os amigos. Vejo os netos, dou uma circulada básica, aí entro em engarrafamento, é tanta zoada e tanto conflito… Já me acostumei com o passo mais lento da Chapada. Não acompanho mais a rotina barulhenta de Salvador. Sinto falta da boemia, mas aquela que vivi no passado. 

Falando em zoada, em Salvador há o fenômeno chamado paredão. Também é uma manifestação cultural?Particularmente, o paredão me incomoda. É preciso diferenciar o que é cultura popular e cultura de massa. O paredão não tem leitura. Não dá nem para sentir a figura rítmica, pois é ensurdecedor. Me perdoem quem acha  esta manifestação um mantra, mas isto está consumindo até o direito de cada um de não consumir aquilo. E não está ocorrendo apenas em Salvador, mas em todo o estado. Aqui em Andaraí foi uma luta. Não consigo achar que vou colocar um paredão na praça e achar que todo mundo ali vai querer ouvir.  Então paredão é uma extensão consumista da indústria cultural? Não quero ser xiita. A cultura popular tem uma identidade. São diversas manifestações em todo país. Toda manifestação cultural tem uma identidade muito peculiar que vem de sua ancestralidade. Aí você fala de paredão, alegando que tem diversos componentes. Pode até ter, mas é uma mesmice que não dá para ver poesia. É uma cadeia em massa, onde se vende equipamento sonoro, que se consome música industrial… Lembra bem do Carnaval moderno. O Carnaval se tornou também um modo de enriquecimento, perdendo a identidade cultural. Não estou dizendo que está errado, apenas que fere a identidade cultural. 

Segundo ano sem Carnaval por causa da pandemia. Qual sua opinião? Não dá para fazer Carnaval. A única preocupação que eu tenho com o Carnaval são os trabalhadores e vendedores que vivem da festa. Terão mais um ano sem esta renda. Porém, infelizmente, não é hora de aglomeração. A covid não acabou. É preciso aproveitar este momento de pandemia e repensar o Carnaval mercadológico. Aproveitar essa chance e reinventar o Carnaval e devolver a rua para o povo. Os ricos podem voltar aos clubes e camarotes. 

Além de transitar pela história, cultura e poesia, você também está presente na área política. Como minimizar os impactos da pandemia no meio cultural? Foi brabo viver de cultura na pandemia. Está sendo, na verdade. A covid-19 tirou o espaço da cultura e quem vive de arte precisa de plateia. Por isso a pandemia machucou tanto a área cultural. Estamos vendo grandes ícones de nossa cultura, como o Balé Folclórico e o Vila Velha passando por muitas dificuldades, mesmo com o Projeto Aldir Blanc [projeto emergencial para a para a área cultural na pandemia], que ajudou muito, mas não contemplou todos. A burocracia na inserção desta lei para diminuir o impacto na cultura atrapalhou. Faltam mais acesso, fomento e incentivo. A cultura, infelizmente, ainda não é vista como política pública, mas apenas como entretenimento, principalmente nos municípios do interior. 

Então a política cultural é parte integrante do desenvolvimento de uma sociedade? A política territorial se faz com a valorização da identidade, da territorialidade e da diversidade cultural e cidadã deste estado/nação. A política cultural e, mais precisamente, o protagonismo dos segmentos culturais  tem demonstrado toda sua pujança não apenas pela sua riqueza de expressões, mas como fator preponderante na geração de trabalho e renda, seja na sua capacidade criativa  e suas interfaces com a economia criativa e solidária, além da sua transversalidade com a educação, a saúde, ação social e fomento da agricultura familiar. Tudo está relacionado. 

Mesmo pertencendo à velha guarda, você gosta muito de interagir nas redes sociais. A internet é um bem cultural? Internet é muito massa. Ela só é mal utilizada por alguns. Tem gente que utiliza ela para espelhos de egos. Mas, como forma de compartilhamento cultural, pensamento e debates, é fantástico. Enxergo muito mais benefícios que desvantagens. Infelizmente, a internet trouxe de volta o processo de intolerância com uma velocidade assustadora.  Trouxe valores retrógrados que a própria constituição já tinha superado. Vamos usar como acesso e troca de conhecimento. A internet facilitou o acesso a tudo. Vamos saber aproveitar.