O poder do voto: além da obrigação, entenda por que o voto é um direito

Com democracia considerada 'imperfeita', Brasil fica em 52º lugar em ranking mundial

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 14 de novembro de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO

Não demora mais do que alguns segundos. Você chega na urna, digita alguns números e aperta uma tecla para confirmar. Simples assim, votou. Já pode dizer que cumpriu a obrigação como cidadã ou cidadão. Agora, só daqui a dois anos. 

Mas não é só isso. De fato, o processo pode até ser rápido e existe mesmo uma obrigatoriedade em comparecer às eleições. Só que cada voto tem um peso - e, por consequência, uma enorme importância - para a democracia, o sistema que vivemos hoje. E, por trás de tudo isso, há um direito: o de escolha, que é concedido pelo regime democrático. 

Essa escolha pode ser de continuidade ou de mudança. Na última eleição municipal, em 2016, por exemplo, dos 43 vereadores eleitos para a Câmara Municipal de Salvador, 15 eram novatos. Ou seja, mais de um terço da casa era de caras novas. Nesse meio, tinha gente que já havia tido mandato em algum momento da vida, mas a maioria era iniciante. 

Eram representantes de tendências políticas em ascensão: dos protetores de animais à nova direita, além da bancada evangélica. Em 2018, no Congresso Nacional, a mesma coisa. Na Câmara Federal, o percentual de renovação chegou a 52% - o maior dos últimos 20 anos. 

Essa troca é possível porque a democracia deve ser entendida como um sistema de governo baseado justamente na premissa de que todos os cidadãos são iguais, como explica o professor Wilson Gomes, titular da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). “Da premissa da igualdade política decorrem muitas consequências, dentre as quais destaco: a) todos os cidadãos podem governar, diretamente ou por meio de representantes escolhidos pelo conjunto da sociedade; b) a Lei que une a todos na comunidade política, alcança, beneficia e obriga igualmente a todos”, diz o professor, que é uma das maiores referências no estudo em democracia no país e que lança o livro Crônica de uma tragédia anunciada: Como a Extrema-Direita Chegou ao Poder (Sagga Editora, R$ 54,90), na próxima sexta-feira (20). Além dessas consequências, de acordo com ele, há, ainda, o Estado, a forma institucional da comunidade política, que só tem como soberano o povo que o constituiu e o fato de que todos os cidadãos são politicamente livres. 

Garantia de liberdade Essa liberdade é que está sendo garantida, quando as pessoas votam, na avaliação da advogada Raquel Ramos Machado, professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). 

"As pessoas não pensam nisso, mas o mais importante é que elas estão assegurando que nós vivamos de forma livre. Tudo é uma tomada de decisão", explica ela, que é coordenadora do grupo de pesquisa Ágora: educação para a cidadania. 

Daí, podem vir os argumentos de que o vereador ou o deputado, por exemplo, não age como quem o escolheu gostaria que agisse. Essa resposta deve ser controlada com o voto. Para a professora, votar é um direito enquanto é considerado como uma possibilidade de inserir os eleitores na sociedade. 

"Se a pessoa tem o direito de reclamar do lixo na cidade, de alguma forma ela está reclamando de quem foi eleito e não está cumprindo seu dever. Ela está, de alguma forma, tendo um agir político", diz Raquel. 

O voto é uma forma de canalizar essa energia política, ainda que ele só aconteça a cada quatro anos. E é preciso levar em conta até mesmo os casos em que o político em questão desaponta as expectativas dos eleitores. "Com quem a gente não se decepciona? A gente se decepciona, às vezes, até com um amigo de infância. Como não se decepciona com um desconhecido? Mas isso tem que ser usado como uma ferramenta de aperfeiçoamento", reforça a professora. Nem sempre houve essa pluralidade - ainda que com as eventuais decepções. Nos primeiros registros de experiências democráticas, como na Atenas da Grécia Antiga, ela era uma forma de participação de poucos. Só estavam incluídos aqueles considerados cidadãos, que eram detentores de terras, escravos e status social.

Mas, a partir do século 17, de acordo com o cientista político Maurício Ferreira, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), há um aumento de participação popular. 

“As próprias cidades ficam mais complexas e há um aumento populacional, sobretudo pela revolução industrial. Daí, a prática da chamada democracia direta já não dava mais e cria-se o modelo da democracia indireta, a representativa”, diz. 

O padrão que vigora hoje no Brasil é o da democracia representativa. Para o professor, a importância do voto tem a ver com o funcionamento da democracia.“Dificilmente uma sociedade grande e complexa como a nossa, com os centros urbanos, conseguiria ter um modelo de democracia direta em que as pessoas vão para uma praça votar no que querem que vire lei. As instituições continuam funcionando porque os representantes que colocamos lá são escolhidos através do voto”, analisa o cientista político. Legitimidade  Na Bahia, são mais de 10 milhões de pessoas aptas a votar. Em meio à pandemia, contudo, é possível que a abstenção no domingo seja maior do que em anos anteriores. No primeiro turno da eleição de 2018, por exemplo, cerca de 20% dos baianos deixaram de comparecer às urnas.

Já este ano, a recomendação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é de que eleitores diagnosticados com covid-19 nos 14 dias anteriores, assim como aqueles que estiverem com febre no domingo, fiquem em casa. 

Mas ainda que o percentual de faltosos cresça, não é isso que define se alguém venceu de forma legítima ou não. Como explica o professor Wilson Gomes, da Ufba, a legitimidade do eleito depende diretamente de uma eleição limpa e livre. Isso inclui liberdade de expressão, de partido, reunião e opinião. Se tudo isso for obedecido, o eleito tem legitimidade, independentemente de quantos tiverem ido às urnas. 

“O problema decorrente de um baixo comparecimento à urna não tem a ver com a legitimidade do eleito, mas com a eficácia do cidadão: o que não votou, votou branco ou anulou seu voto decidiu propositalmente que a sua vontade não deveria peso algum. Decidiu ser ineficiente, inefetivo diante do direito de escolher que a democracia lhe concede”, explica. 

Aprendizado Em um pleito como o deste domingo, há muita coisa em jogo. De fato, o interesse em política cresceu no Brasil, nos últimos anos. Mas, ao mesmo tempo, para muita gente, esse interesse ainda está restrito ao cenário nacional. Nem todo mundo acompanha o que acontece nas Câmaras Municipais de cada cidade, por exemplo. 

Talvez você nem precise pensar muito para lembrar que conhece alguém que já chegou a decidir em quem votava para vereador ou vereadora enquanto estava na própria fila, esperando para entrar na seção eleitoral. 

Para a socióloga Cleide Magáli dos Santos, professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), é preciso estimular que os eleitores se interessem pelo debate municipal. Isso deveria partir da própria sociedade civil, mas também dos partidos e até da imprensa, ao pautar questões relacionadas ao legislativo das cidades "Quem decide nosso cotidiano, nossa mobilidade, se vai ter água, se vai ter creche, é o poder municipal. A gente deveria ser muito mais ligada e debater muito mais o pleito municipal, porque efetivamente é ele que rege a nossa existência cotidiana, do transporte público à iluminação", reforça ela, que estuda participação, direitos e estado democrático. Um dos exemplos do poder do voto é a própria alternância de mandatários. Deixando à parte países que sofrem golpes de estado ou outros ataques à democracia, quem define que um grupo vai estar no comando naquele momento é o voto. Goste-se do tal grupo ou não, foi o voto. 

"Um grupo chega ao poder pelo voto, mas também pelo voto esse grupo é derrubado. Isso aconteceu em Portugal, aconteceu em países da América Latina e aconteceu agora nos Estados Unidos. São processos políticos diferentes e alguns chegaram a ter violência, mas foi o voto, em última instância, que definiu isso", explica. 

Entre lições que podem vir de outros países, está o fato de que alguns exercitam mais sua democracia local. Em países como os Estados Unidos, até os representantes do Judiciário são escolhidos pelo voto popular. Ao mesmo tempo, escolas e órgãos municipais têm mais participação ativa nas comunidades em que vivem, como explica o professor Maurício Ferreira, da UFRB. 

"O modelo de democracia que temos é o liberal, que historicamente caminha junto com o liberalismo. Quando você vai para outros modelos, há formas de participação diferentes. Em países socialistas como Cuba e China, as instituições não são as mesmas, mas não quer dizer que não haja participação", completa. 

Votos em fatos e fotos:

[[galeria]]

Considerado 'democracia imperfeita, Brasil é 52º em ranking mundial' Desde 2006, a revista The Economist divulga o ranking do Índice de Democracia. A publicação analisa a democracia a partir de aspectos como o processo eleitoral, liberdades civis e funcionamento do governo. Assim, os países podem ser classificados em democracias plenas, democracias imperfeitas, regimes híbridos e regimes autoritários. 

Em 2019, último ano do ranking, a Noruega ficou em primeiro lugar, com o maior índice de democracia. Em notas de 0 a 10, o país teve índices máximos em categorias como processo eleitoral e pluralismo, participação política e cultura política. Assim, seu índice global é de 9.87. Ao todo, apenas 22 países são considerados democracias plenas pelo ranking. 

O voto é apenas uma das formas de realizar a democracia, como lembra a professora de Direito Eleitoral Raquel Ramos Machado, da Universidade Federal do Ceará (UFC). No entanto, muitos desses países com democracias consideradas plenas estão em outro patamar de consolidação dos direitos civis - o que interfere nos direitos políticos. "Aqui no Brasil, direitos civis e sociais ainda não foram devidamente desenvolvidos. Temos pobreza, desigualdade social, não necessariamente temos todas as liberdades. Por isso, o que nós temos que procurar é realizar uma democracia continuada. O voto é importantíssimo para isso", explica. Os Estados Unidos, que têm uma das democracias mais tradicionais do mundo, não estão entre as consideradas plenas. O país fica com notas abaixo de 8 em critérios como funcionamento de governo, participação política e cultura política. De acordo com o índice, estão entre as chamadas democracias imperfeitas. A nota final é 7.96. 

O Brasil também é considerado uma democracia imperfeita. Ainda que tenha uma das maiores notas no aspecto processo eleitoral e pluralismo - 9.58 -, o país pontua mal em outras três 

Em funcionamento de governo, tem 5.36; em participação política, 6.11 e em cultura política, apenas 5. Já em liberdades civis, o índice chega a 8.24. A nota final do país é 6.86. Entre os países da América do Sul, apenas o Uruguai e o Chile estão entre as democracias plenas. O Brasil ainda fica atrás de nações como Trinidad e Tobago, Colômbia e Argentina. 

 "A nossa democracia, no que diz respeito ao sistema eleitoral, é muito melhor do que a dos Estados Unidos, que é mais complexa. Ela só não é melhor com relação à pobreza, porque pode haver compra e venda de voto, por exemplo. Na Noruega, seria difícil ter isso, nos Estados Unidos também. Mas na rapidez e habilidade para apurar, o Brasil é um exemplo", completa a professora. 

O último colocado do ranking é a Coreia do Norte, considerado um regime autoritário. A Coreia do Norte tem eleições, mas por lei, cada circunscrição só pode ter uma candidatura - sempre atrelada à frente única que contempla os três únicos partidos autorizados no país governado por Kim Jong-un. O índice final da Coreia do Norte é de 1.08, sendo que o país não pontua em aspectos como processo eleitoral e pluralismo, nem em liberdades civis. 

Confira o ranking completo (2019): 

Democracias plenas

1º) Noruega - 9.87 2º) Islândia - 9.58 3º) Suécia - 9.39 4º) Nova Zelândia - 9.26 5º) Finlândia - 9.25 6º) Irlanda - 9.24 7º) Dinamarca - 9.22 8º) Canadá - 9.22 9º) Austrália - 9.09 10º) Suíça - 9.03 11º) Países Baixos - 9.01 12º) Luxemburgo - 8.81 13º) Alemanha - 8.68 14º) Reino Unido - 8.52 15º) Uruguai - 8.38 16º) Áustria - 8.29 16º) Espanha - 8.29 18º) Maurícia - 8.22 19º) Costa Rica - 8.13 20º) França - 8.12 21º) Chile - 8.08  22º) Portugal - 8.03

Democracias imperfeitas 23º) Coreia do Sul - 8.00 24º) Japão - 7.99  25º) Estados Unidos - 7.96 26º) Malta - 7.95  27º) Estônia - 7.90 28º) Israel - 7.86 29º) Botswana - 7.81 30º) Cabo Verde - 7.78 31º) Taiwan - 7.73 32º) Chéquia - 7.69 33º) Bélgica - 7.64 34º) Chipre - 7.59 35º) Itália - 7.52 36º) Eslovênia - 7.50 36º) Lituânia - 7.50 38º) Letônia - 7.49 39º) Grécia - 7.43 40º) África do Sul - 7.24 41º) Timor-Leste - 7.19 42º) Eslováquia - 7.17 43º) Malásia - 7.16 43º) Trinidad e Tobago - 7.16 45º) Colômbia - 7.13 46º) Panamá - 7.05 47º) Bulgária - 7.03 48º) Argentina - 7.02 49º) Suriname - 6.98 50º) Jamaica - 6.96 51º) Índia - 6.90 52º) Brasil - 6.86 53º) Tunísia - 6.72  54º) Filipinas - 6.64 55º) Gana - 6.63 55º) Hungria - 6.63 57º) Polônia - 6.62  58º) Peru - 6.60 59º) Croácia - 6.57 60º) República Dominicana - 6.54 60º) Lesoto - 6.54 62º) Mongólia - 6.50 63º) Romênia - 6.49  64º) Indonésia - 6.48 65º) Namíbia - 6.43 66º) Sérvia - 6.41 67º) Equador - 6.33 68º) Tailândia - 6.32 69º) Sri Lanka - 6.27 70º) Paraguai - 6.24 71º) El Salvador - 6.15  71º) Guiana - 6.15  73º) México - 6.09 74º) Papua-Nova Guiné - 6.03 75º) Hong Kong - 6.02 75º) Singapura - 6.02

Regimes híbridos 77º) Macedônia do Norte - 5.97 78º) Ucrânia- 5.90 79º) Albânia - 5.89 80º) Bangladesh - 5.88  81º) Fiji - 5.85 82º) Senegal - 5.81 83º) Moldávia - 5.75 84º) Montenegro - 5.65 85º) Madagascar - 5.64 86º) Armênia - 5.54 87º) Malawi - 5.50 88º) Libéria - 5.45 89º) Geórgia - 5.42 89º) Honduras - 5.42 91º) Butão - 5.30 92º) Nepal - 5.28 93º) Guatemala - 5.26 94º) Quênia - 5.18 95º) Tanzânia - 5.16 96º) Marrocos - 5.10 97º) Benim - 5.09 97º) Zâmbia - 5.09 99º) Uganda - 5.02 100º) Mali - 4.92 101º) Quirguistão - 4.89 102º) Bósnia e Herzegovina - 4.86 102º) Serra Leoa - 4.86 104º) Bolívia - 4.84 105º) Haiti - 4.57 106º) Líbano - 4.36 107º) Gâmbia - 4.33 108º) Paquistão - 4.25 109º) Nigéria - 4.12 110º) Turquia - 4.09 111º) Costa do Marfim - 4.05 112º) Burkina Faso - 4.04 113º) Argélia - 4.01

Regimes autoritários 114º) Jordânia - 3.93 114º) Kuwait - 3.93 116º) Mauritânia - 3.92 117º) Palestina - 3.89 118º) Iraque - 3.74 119º) Angola - 3.72 120º) Moçambique - 3.65 121º) Gabão - 3.61 122º) Mianmar - 3.55 122º) Nicarágua - 3.55 124º) Camboja - 3.53 125º) Etiópia - 3.44 126º) Togo - 3.30 127º) Níger - 3.29 128º) Catar - 3.19 129º) Ruanda - 3.16  129º) Zimbábue - 3.16 131º) Comores - 3.15 132º) Essuatíni - 3.14  132º) Guiné - 3.14 134º) República do Congo - 3.11 134º) Rússia - 3.11 136º) Vietnã - 3.08 137º) Egito - 3.06 137º) Omã - 3.06 139º) Cazaquistão - 2.94 140º) Venezuela - 2.88 141º) Afeganistão - 2.85 141º) Camarões - 2.85 143º) Cuba - 2.84 144º) Djibouti - 2.77 145º) Emirados Árabes Unidos - 2.76 146º) Azerbaijão - 2.75 147º) Sudão - 2.70 148º) Guiné-Bissau - 2.63 149º) Bahrein - 2.55 150º) Bielorrússia - 2.48 151º) Irã - 2.38  152º) Eritreia - 2.37 153º) China - 2.26 154º) Burundi - 2.15 155º) Laos - 2.14 156º) Líbia - 2.02 157º) Uzbequistão - 2.01 158º) Iêmen - 1.95 159º) Arábia Saudita - 1.93 159º) Tajiquistão - 1.93 161º) Guiné Equatorial - 1.92 162º) Turquemenistão - 1.72 163º) Chade - 1.61 164º) Síria - 1.43 165º) República Centro-Africana - 1.32 166º) República Democrática do Congo - 1.13 167º) Coreia do Norte - 1.08