O Senhor do Bonfim dos Pobres

Ele é o padroeiro dos desvalidos. Mendigo, ladrão, bicheiro, órfão, prostituta são todos irmãos

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  • Nelson Cadena

Publicado em 10 de março de 2022 às 05:00

- Atualizado há um ano

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“A rua dele não tem asfalto, é terra batida. A frente da casa dele não tem passeio. É chão batido. A casa dele não tem taco. É cimento batido. A cama dele não tem luxo. É colchão batido. Conhecido como ele na cidade, só o outro. O outro mora numa casa toda de ouro, no alto da colina. Ele mora numa casa toda de barro, na beira do vale. O outro é o padroeiro da cidade. Ele é o padroeiro dos desvalidos. Mendigo, ladrão, bicheiro, órfão, prostituta são todos irmãos dele. Foi miserável, foi marginal, foi off-side da lei, é da família dele, Major Cosme de Farias, Senhor do Bonfim dos Pobres”.

Assim começa a narrativa-reportagem de Sebastião Nery publicada no jornal Polítika, de sua propriedade, em 02 de janeiro de 1972, nove semanas antes do falecimento do ilustre rábula. O jornalista, político e advogado estava em evidência na mídia nacional desde sua eleição para a Assembleia Legislativa da Bahia, destacado como o político ativo mais antigo do mundo, com 75 anos de parlamento, na Câmara de Vereadores e na Assembleia. Meses antes, em abril de 1971, José Hamilton Ribeiro entrevistara o personagem para a Revista Realidade.

Nery chegou na Bahia à noite e foi direto para a casa de Cosme de Farias, o relógio anunciava 20h e estava deitado. “Bato a porta e me atende uma senhora simpática. Me disse depois: o Major dorme cedo, mas, como o senhor veio do Rio, vou ver se ele pode atender”. Nery prossegue: “Na cama simples, sentado, coberto até o peito, recostado na cabeceira... Corpo de uma criança de dez anos, de óculos, cabelos brancos... Levanta os olhos, pergunta quem é, reconhece, dá uma risada, manda sentar na beira da cama”. A senhora simpática era Dona Iraci. Cosme se explica com olhar malicioso de “menino fazendo traquinagem”: ‘É minha companheira.’

Desculpou-se por estar ouvindo muito mal, contou que um sino bateu muito forte na igreja de São Domingos, onde despachou durante 38 anos, atendendo os pobres. Contou ter tido um derrame no ouvido e antes ter sofrido um tombo forte, a sua perna direita ainda doía. Agruras à parte, se vangloriou de nunca ter faltado a uma sessão da Assembleia, naquele tempo instalada no atual prédio-sede da ABI, salvo uma extraordinária, onde não compareceu porque não foi convidado, lamentou.

Ao longo das quatro páginas de reportagem, Cosme de Farias contou a Nery sobre sua amizade com Ruy Barbosa, almoçava com ele quando vinha à Bahia; contou de sua prisão junto com Nelson Carneiro, na Revolução de 1930; de como conseguiu a absolvição do capanga contratado para matar o governador José Marcelino; contou outros tantos episódios de sua atividade como rábula.

Perguntado por Nery sobre o episódio do suposto ladrão do Bonfim, explicou: “Ele tinha roubado mesmo. Entrou na igreja e tirou as esmolas que o povo joga para o Senhor do Bonfim. Eu fui para o júri e mostrei que não tinha sido nenhum crime, mas um milagre. O Senhor do Bonfim que não precisa de dinheiro tinha ficado com pena da miséria do homem, que estava com mulher e filhos em casa, com fome, e deu dinheiro a ele, dizendo: ‘Meu filho, esse dinheiro não é meu, é do povo. Você é o povo com fome, pode levar.... E tem mais, o Senhor do Bonfim é Deus e Deus pode tudo. Se ele não quisesse que o acusado levasse o dinheiro tinha impedido. Se não impediu, não foi crime, foi milagre”.

O júri absolveu o ladrão por unanimidade. Sebastião Nery retratou o entrevistado como uma entidade:  “Ele é uma coisa pública, mais público do que os jardins, as estátuas, as praças.... Porque ele é 80 anos de trabalho e bondade andando vivo pelas ruas”.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras