Ofereço meu ódio em homenagem aos finados da pandemia

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  • Da Redação

Publicado em 30 de outubro de 2021 às 10:47

- Atualizado há um ano

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Se o seu bom mocismo se incomodou com o título, informo que todo sentimento tem função, cada qual em seu tempo - e pelo objeto - devido. Em desajuste, qualquer um deles pode fazer mal, inclusive o amor romântico que é tão bonitinho, mas só presta com irrestrita reciprocidade e olhe lá. Ou é esparro, quem não sabe? Divago. Era sobre ódio que eu falava. Ou melhor, sobre o meu que, hoje, é homenagem.

(Não confunda a conversa aqui com "discurso de ódio", pela bença de sua mãe, que eu não vou ter paciência pra esse nível de discussão.)

O Dia de Finados nunca me disse muita coisa (meus mortos estão dentro de mim), mas, num tempo em que a Morte distribui foices por tantas mãos, e impossível não lembrar de quem teve as cabeças cortadas e do protagonismo de quem as cortou. Há quem não se importe, eu sei. Ou você pode estar anestesiado/a, apenas. Esse sintoma é absolutamente previsível em grandes tragédias que duram longos dias, meses, anos. Mas eu me importo e não estou anestesiada. Sobrevivi também nesse sentido e não há esperança de recomeço, não há ansiedade pela festa que virá (quando meu filho também for vacinado) que me tire a noção exata do que aconteceu com a gente. Nem quero que tire. Felicidade e lucidez não são conceitos contraditórios. 

Estamos perto do fim, parece. Ou apenas vivemos uma trégua, não há quem tenha essa resposta. De todo modo, parece que começamos a respirar, depois de uma grande guerra entre a ciência e o desconhecimento arrogante e mal intencionado. É óbvio que o desconhecimento arrogante e mal intencionado teria que arredar, em algum momento. Mas leva, nas costas, boa parte dos mais de 600 mil mortos (registrados) e esse número continua crescendo porque ainda não acabou. De forma menos acelerada, justamente pelo avanço da vacinação que acaba de sofrer, de todos, o mais infame ataque: o Indiciado Por Nove Crimes disse que vacina "dá AIDS". Como não odiar?

(Tivemos o pior surto DO PLANETA, atrás, apenas, dos EUA de Trump.) 

(Dos mais de 600 mil óbitos registrados, muitos seriam inevitáveis, precisamente aqueles que nos pegaram de surpresa, os de antes de a vacina ser inventada, aqueles de quando sequer conhecíamos os protocolos adequados. Porém, depois disso, "morrer a atacado" passou a ser obra humana imperdoável.) 

Nenhum sentimento da cartela "gratiluz" me serve, nesta ocasião. Em alguns momentos, leveza é sinônimo de cinismo e emanar "boas energias aos que se foram" é apenas uma forma de seguir se esquivando do imenso peso da culpa que está dividida entre muitos de nós. Você concorde ou não. Florzinha, reza e lavagem de lápide aliviam sentimentos dos/as que ficaram, mas não quita a dívida que temos com quem morreu sufocado/a e foi enterrado/a em dois minutos, dentro de um saco preto, em cova aberta a toque de caixa, porque alguém achou que o comércio não podia parar. Por exemplo. Odiar é um mínimo de dignidade. 

O meu ódio se dirige a todos/as os/as que, em diversos níveis e variados lugares de poder, tentaram convencer alguém de que a pandemia era uma bobagem, quando o contrário já era mais do que provado. Também aos profissionais da saúde que, mesmo sabendo que não havia eficácia comprovada in vivo, prescreveram antiparasitário como tratamento preventivo e, com isso, além de criarem falsa sensação de segurança (e, portanto, promover a contaminação pelo vírus) causaram graves problemas hepáticos em pessoas, antes, saudáveis. Aos promotores do "tratamento precoce", o mesmo ódio, extensivo aos criminosos que transformaram hospitais em tenebrosos laboratórios para testes em cobaias humanas e não viram nada de errado nisso porque "óbito também é alta". 

O mesmíssimo ódio aos que se esquivaram dos decretos de fechamento necessários, aos que não fiscalizaram o que devia ser fiscalizado, aos comerciantes que insistiram em burlar as regras, aos donos de escolas que gastaram suas energias tentando "reabrir", mais preocupados com lucros do que com vidas. A todos os que promoveram festas clandestinas, encontros "namastê" e o pensamento de que bastava pensar positivamente, o meu mais profundo ódio. O mesmo aos senhores e senhoras das casas grandes que continuaram expondo funcionários/as domésticos/as aos transportes públicos lotados porque não admitem a possibilidade de limpar suas próprias sujeiras. 

Aos criadores/as de "fake news" e aos que as espalham, ódio. Aos que pegaram carona na desgraça pra enriquecer com álcool, testes e que tais falsos. É tudo escória, assim como "líderes religiosos" que prometeram blindagem espiritual porque não podiam perder a presença e o dinheiro dos ignorantes úteis. Aos que fugiram para seus paraísos particulares de onde podiam administrar seus negócios, mas obrigaram funcionários/as à presença suicida, aos que forçaram mulheres grávidas a trabalhar presencialmente e promoveram uma geração de "órfãos da pandemia". A todos /as que foram umbigo, egocentrismo e má intenção, meu mais profundo ódio. Todos/as são responsáveis por boa parte dessas mortes trágicas, sofridas, horrorosas.

Pandemias são previstas e esperadas (nunca se sabe quando nem qual, mas elas chegam), porém não é tudo bem que pessoas se comportem de modo a ajudar a doença e não a cura, que desdenhem da ciência, que coloquem seus eguinhos, prazeres e interesses individuais em primeiro plano. Esse é um comportamento perverso, indigno e assassino. Os bois têm nomes e os conhecemos. Vou envelhecer contando essa história, enumerando vítimas e culpados/as de todos os níveis hierárquicos. Ter memória é dor e dádiva. Sentir é estar viva. Hoje, no altar da espiritualidade, ofereço meu ódio em homenagem aos finados da pandemia. Que seus algozes vivam por longos anos, até que todas as pessoas compreendam o que eles são. Que paguem pelos crimes cometidos, nos casos em que o que fizeram foi mais do que mau-caratismo. Que tenham, todos, vergonha de si mesmos e que isso lhes roube a paz. Amém. Axé. Assim será.