Oitenta inquéritos são instaurados em 2019 para investigar abusos contra crianças

Neste sábado (18), é Dia de Combate ao Abuso da Criança e do Adolescente

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  • Gabriel Amorim

Publicado em 18 de maio de 2019 às 07:30

- Atualizado há um ano

Maria Gonçalves (nome fictício) tinha oito anos quando os abusos começaram dentro de casa. Seu próprio pai, alcoólatra, chegou a tentar vendê-la em troca de dinheiro para sustentar o vício. Hoje, aos 24, ela trabalha em um instituição que acolhe crianças vítimas de abuso. “Trabalho aqui para mostrar a eles que não percam a esperança. Mesmo quando tudo parece ruim, tem como ver a luz no fim do túnel”, relata.

A história de Maria faz parte de uma estatística que ainda é preocupante. Em Salvador, até o final do mês passado, foram abertos 80 inquéritos para apurar denúncias de estupro de vulnerável, crime que ocorre quando um adulto tem relações sexuais com menores de 14 anos. No ano passado, a Delegacia Especializada na Repressão de Crimes Contra Criança e Adolescente (Derca) registrou um total de 288 inquéritos.

Há 19 anos, o dia 18 de Maio é marcado como o Dia de Combate ao Abuso de Crianças e Adolescentes.  Anualmente, em razão da data, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) realiza campanhas que tocam no assunto. Neste ano, a campanha com o slogan ‘Orientar é proteger’ focou na importância das famílias de conversarem com as crianças sobre o tema. 

“Os números são preocupantes. De janeiro de 2018 a abril de 2019, já registramos 1.241 casos de estupro de vulneráveis na Central de Inquéritos do MP”, destacou a procuradora de Justiça Marly Barreto, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Criança e do Adolescente (Caoca). O número destacado pela procuradora inclui não só os inquéritos policiais, mas também os termos circunstanciados e as notícias de fato - quando é levado ao conhecimento do órgão através do disque denúncia (Disque 100), por exemplo.

Diálogo  Conversar sobre o assunto em casa é, na opinião da delegada titular da Derca, Ana Cricia Macêdo, de grande importância.“A prevenção desses crimes é um papel importante da família, de incentivar o autocuidado e defesa da criança para que ela saiba se defender. Com cuidado e com a linguagem adequada para que a criança tenha um vínculo de confiança com a família. A gente percebe que, muitas vezes a criança não conta não só por medo, mas por vergonha”, destaca a delegada.Segundo Ana Cricia, identificar esse tipo de situação não é fácil e por vezes criar um ambiente onde as crianças se sintam à vontade para falar pode ajudar. “É um assunto bastante delicado porque não é algo fácil de identificar. Nem sempre é o tipo de crime que deixa vestígios”, detalha. Uma vez identificado o fato, segunda a delegada, o próximo passo é procurar a delegacia especializada. “A delegacia faz parte de um sistema de proteção e atua para proteção e a responsabilização do indivíduo. A rede de proteção envolve vários órgãos, como conselho tutelar e acompanhamento psicosocial”, detalha.

Rede Parte da rede de proteção citada pela delegada são os lares que acolhem as crianças vítimas do abuso. Isso porque, muitas vezes, os abusos ocorrem dentro da própria casa do menor, por parentes próximos. “A vítima mais nova aqui tem sete anos e passou por três abusos, com três pessoas diferentes da própria família”, conta Vera Guimarães, fundadora do Lar Pérolas de Cristo, abrigo especializado em acolher essas vítimas há 19 anos.

O projeto do abrigo nasceu, inclusive, de uma história de superação. “Fui abusada quando tinha dez anos de idade e desde lá sonhei em desenvolver um trabalho que desse a assistência que eu não tive”, diz Vera.

Hoje, o Lar conta com uma equipe multidisciplinar com educadoras, psicólogas, assistentes sociais e outros profissionais e presta assistência a 80 crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Destas, mais de 50% sofreram algum tipo de abuso.

O número de casos também é, na opinião da gestora do abrigo, preocupante. Só em 2019 o Pérolas de Cristo já acolheu oito vítimas novas. O número, segundo a gestora, seria ainda maior se muitos dos casos não deixassem de ser denunciados. “O filho é criado para obedecer pai e mãe, como é que vai se colocar contra quando ele tem cinco, seis anos de idade? A maioria dos casos não se denuncia por ser dentro de casa. Às vezes a família depende financeiramente do agressor”, conta ela.

No caso de Maria Gonçalves, por exemplo, durante anos ela tentou alertar a familia. Contou para tias, avó, que não acreditaram em seus relatos. Depois de três anos sofrendo abusos no interior, a jovem foi trazida pelo pai para morar em Salvador. Sozinho com ela, sem qualquer outro membro da família por perto, os abusos foram intensificados. "Além dos abusos sexuais, ele me batia, me espancava”, relata.

Apenas aos 13 anos, cinco anos depois que os abusos começaram é que Maria contou tudo a uma vizinha que a levou à delegacia. Maria passou por todo processo da rede de proteção e foi encaminhada a uma instituição de acolhimento, onde hoje trabalha para ajudar crianças que, como  ela, sofreram abusos. Depois da denúncia, a prisão do agressor foi por pouco tempo. Na época não foi possível fazer o exame de corpo delito e sem provas foi preciso soltar o pai agressor.

Sobre ele, Maria diz não quer manter nenhum tipo de aproximação apesar de tê-lo perdoado. “Nunca vou me esquecer. Vou viver minha vida inteira com essa lembrança. Mas já consegui superar, hoje tenho minha casa, um relacionamento, e consigo perdoá-lo. Não quero vê-lo, mas sei que ele é doente, não sou eu que tenho que julgar”, contou.  

* Com supervisão da chefe de reportagem Perla Ribeiro