Os caboclos de carne e osso: quem faz o Dois de Julho acontecer

Homens e mulheres protagonizam histórias de resistência e se inspiram em símbolos da liberdade

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  • Fernanda Santana

Publicado em 2 de julho de 2019 às 15:12

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Uma vez por ano, são todos caboclos. Puxam pelas mãos as cordas que guiam o caboclo e a cabocla erguidos da Lapinha ao Campo Grande. Os homens do Batalhão Quebra-Ferro combinam as próprias batalhas com a resistência de quem lutou para libertar a Bahia. No percurso, o guardião Cosme comemora mais um ano de vida, enquanto Lourinho vence o cansaço para descer e subir as ladeiras. Aconteça o que acontecer, seguem em frente. A tradição já faz parte da vida de muitos deles há mais de 40 anos. 

As imagens de ferro são levadas em duas carruagens. Saem do Pavilhão 2 de julho, no Largo da Lapinha, acompanhadas por 100 funcionários da Prefeitura de Salvador. O grupo de verde acompanha o caboclo, o de amarelo a cabocla. “Eles são símbolo de Bahia”, define Cosme Domingos, 70 anos, não só um dos mais antigos na função, como protagonista de uma história que começa no 2 de julho. Cosme comemora o aniversário no cortejo cívico (Foto: Fernanda Lima/CORREIO) “É o meu aniversário. Venho todo ano porque eu gosto. É bom, é bonito. Minha família está espalhada por aí”, festeja Cosme.É impossível não lembrar da filha, Sônia, falecida em 2017, durante o caminho. “Vinha, pegava na corda também. Minha filha, né? Como eu lembro dela”, emociona-se. Mas Cosme segue em pedido de força e resignação. O homem com nome de santo, acompanhado do irmão Damião, não deixa a corda cair. Como não deixam os colegas, tão antigos quanto Cosme no trabalho. Há apenas homens na função.

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O Lourinho, apelido de Lourival Nascimento, 65, também ajuda a frear e empurrar os caboclos desde 1979. É sempre cumprimentado como uma autoridade. “Aí já é sócio do Dois de Julho”, brinca o colega Paulo Teixeira, 50. Os homens, geralmente, só deixam o cortejo quando chega a aposentadoria e são substituídos por outros funcionários da repartição pública. “É muito gratificante. Cada um com sua história. Mas as pessoas se tornam caboclos”, compara Lourinho, que começou a trabalhar aos 13 anos, numa loja na Avenida Sete, para ajudar a família. Um caboclo de carne e osso. 

O caboclo representa os índios e mestiços baianos que lutaram pela Independência da Bahia em 1823. A cabocla, representante da Índia Paraguaçu, chega às comemorações apenas em 1849. O pintor Evaldo Barbosa, 63, conhece os caboclos desde a infância, quando era levado pela mãe ao Campo Grande com os três irmãos. Também há 40 anos, deixou o público para guiar as imagens.“É uma festa sadia, da nossa Bahia. Representa nossa história. Estar aqui é muito gratificante”, conta ele, desde o ano passado envolvido na organização do batalhão. Os mais jovens são quem fazem o caminho da liberdade há pelo menos mais de 10 anos. Até 2004, Seu Jorge era apenas um espectador. Traz na memória as idas ao cortejo com os pais. No futuro, levará na memória as lembranças da época em que levantou a bandeira da liberdade. “Imagine, meu pai faleceu quando minha mãe tinha 40 anos. Ela precisou criar nove filhos sozinha Para mim, ela é uma heroína”, define. Ali, uma vez por ano, todos são heróis.

Pega no caboclo O hábito vem de jovem. Dona Helena chegou pequena, agarrada às cordas do cortejo e à barra de saia da mãe, para pedir proteção ao caboclo e a cabocla símbolos do Dois de Julho. Durante todo o percurso, as imagens são cercadas e tocadas por quem acredita na força da ancestralidade. 

A filha de Dona Railda seguiu o caminho sem a mãe, que fez do Dois de Julho a devoção de uma vida. Agora, com a proteção da cabocla. "Vou pedindo força. É tão bonita a tradição. Lembro que eu vinha de mão dada com minha mãe, tocando na cordinha, nas imagens", recorda a aposentada Helena Reis, 70.O caminho até o Campo Grande é um percurso de reverência à Cabocla e ao Caboclo. Todos querem se aproximar. Dizem os mais antigos que quem pede com as mãos coladas às imagens realiza. No Dois de Julho, uma festa cívica mistura-se com a religiosidade.  As portas da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos se abrem e a Irmandade dos Homens Pretos cercam o gradil para saudar os caboclos e festejas a liberdade. 

Há 10 anos, a enfermeira Altair Ferreira, 50, junta fé e manifestação. "Tô saindo de Salvador para Alemanha. Minha filha já tá longe. E eu vou aqui pedindo força", conta. É o único momento que Altair interrompe a vigília à cabocla.

As palmas são outra forma de reverenciar quem resistiu pela independência baiana. Na camiseta, Mariana Costa, 64, traz a orixá Oxum. Para ela, as homenagens são também um agradecimento. "A gente se sente forte. Faço esse caminho há 30 anos. É muita emoção", conta. No próximo dia 6, as imagens fazem o caminho reverso em direção ao pavilhão. "É uma festa muito importante. É uma coisa de nergia. Até o final vou assim, colado no caboclo", diz Josué Conceição, 34, filho de Oxóssi, Ogum e Oxum. Novamente, estarão lá,  colados na imagens, junto a outra legião que acredita na força dos caboclos. Agradecer nunca é demais.

Não deixa o caboclo cair  De tão perto que querem ficar dos caboclos, não é difícil encontrar um ou outro prestes a subir na sustentação das imagens. “A gente tem que ir com jeitinho, é uma festa do povo”, conta Vania Souza, uma das funcionárias da gerência de promoção cultural da Fundação Gregório de Matos, órgão da Prefeitura de Salvador responsável pelos festejos da Independência do Brasil na Bahia. Enquanto segue o cortejo da liberdade, também segue o cortejo de quem torna a comemoração possível

São 55 funcionários da Fundação distribuídos da Lapinha, onde tudo começa, até o Campo Grande. Cada passo é acompanhado de um grito de ordem ou simplesmente um alerta. As partes mais críticas costumam ser a descida da Ladeira do Carmo e a subida da Ladeira do Pelourinho. É necessário força para frear e depois empurrar as imagens em meio a fanfarras e manifestantes. E paciência para controlar o povo.

Nos festejos de 2007, depois de muita insistência, Antônio Santana, 57, viu a roda de uma das carruagens dos caboclos passar por cima do pé de uma senhora que parecia querer subir no pé do caboclo. “Vou daqui de lado para ficar avisando. Grito mesmo. Mas o povo quer ficar perto, é difícil controlar”, conta o agente de obras públicas, integrante do Batalhão Quebra-Ferro.Aqui e ali, o grito “segura o caboclo” é o mais comum da festa. Os caboclos estão seguros. “A gente vem para ordenar. Tenta controlar no circuito todo”, diz o analista da Fundação, Fabiano Medeiro. A atuação dos organizadores, inclusive dos Quebra-Ferro, é desconhecida da maioria. Também por isso, neste ano, durante o desfile, foi gravado um documentário do Dois de Julho sob a perspectiva popular, revelou o presidente da fundação, Fernando Guerreiro."Vão ser entrevistadas pessoas que participam, os quebra-ferro, que ninguém conhece, são os que puxam o carro, os fiéis, os acompanhados pelo Cabloco, mostrando que essa talvez seja a festa mais popular da cidade".Organizar, e ordenar, o Dois de Julho, compreendem, é lidar com as manifestações populares. E a liberdade, símbolo maior de todo o cortejo. Só não pode subir no caboclo. 

*Orientada pelo chefe de reportagem Jorge Gauthier.