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Paulo Sales
Publicado em 2 de maio de 2022 às 05:30
Outro dia, Lee Majors completou 83 anos. Mas quem ainda se lembra de Lee Majors? Na aurora da minha geração ele encarnava o arquétipo do herói, protagonizando a série O Homem de Seis Milhões de Dólares. Todas as tardes – ou noites, não lembro mais – assistíamos às peripécias do homem biônico (termo hoje totalmente fora de moda, mas o suprassumo da tecnologia naquela época, meados dos anos 70).>
Vítima de um grave acidente aéreo, o astronauta Steve Austin, vivido por Majors, teve parte do corpo reconstituída: as duas pernas, um braço e um olho passaram a ser mecânicos. Com isso, ele corria com extrema rapidez e saltava enormes distâncias, além de ter um tremendo soco e visão telescópica. Seus saltos em câmera lenta, que vinham acompanhados de um som característico, eram um atrativo à parte, que tentávamos reproduzir inutilmente na escola com nossos congas e kichutes estropiados.>
Revi agora no YouTube a abertura da série e me transportei para o passado. Incrível como aquilo ficou gravado no disco rígido do meu cérebro. Era um tempo – impensável para as crianças de hoje – em que só havia dois canais de tevê disponíveis em Salvador: Globo e Tupi. Além das novelas globais, consumíamos enorme quantidade de lixo pop e adorávamos tudo aquilo, pouco importando se eram “enlatados americanos”.>
Viagem ao Fundo do Mar, Terra de Gigantes, O Elo Perdido, As Panteras (com a antiga senhora Majors, Farrah Fawcett), Dallas, A Feiticeira, Agente 86, Mulher-Maravilha, Lessie, O Incrível Hulk (com um David Banner fracote e tristíssimo), Tarzan (outra série de abertura memorável, com aquela cacofonia selvagem), Flipper e tantas outras. Havia nessas séries um ideal de aventura e coragem, com a tecnologia começando a dar as caras, que fazia a cabeça de crianças introspectivas como eu fui.>
Era como a descoberta de um universo paralelo, longe da mesmice e das limitações físicas, que bem ou mal produzia uma nova perspectiva, ampliava a nossa formação e incutia em nós a necessidade de conhecer melhor o mundo em que vivíamos. Para além da escola e da casa, dos colegas e da família. Para além da bola na praia, das brincadeiras com bonequinhos de plástico, das tardes lendo revistinhas em quadrinhos.>
Às vezes me pego tomado por uma melancolia passageira por saber que não há mais volta, apenas um ir contínuo para bem distante do que se foi um dia. Mas a memória afetiva serve para isso mesmo: para que não nos esqueçamos de quem fomos e de onde viemos. Para que o garoto que assistia àquelas séries não se perca no emaranhado de referências em que nos transformamos.>
Vejo a mim mesmo naquele tempo: tímido, gordinho, com um sentimento de inadequação que me acompanharia até a vida adulta. Um anti-herói, sem os atributos físicos e morais que se espera de um protagonista da própria trajetória. Afinal, ao contrário do homem de seis milhões de dólares, eu não tinha superpoderes.>
Era frágil e vulnerável como o personagem de um filme do qual gostava muito, chamado Perdido no Deserto. Passava sempre nas sessões da tarde do meu alvorecer particular: um garoto sobrevivia a um acidente aéreo e vagava sem rumo com seu cachorrinho por dunas sem fim, enfrentando a sede, o calor e a mordida de um escorpião. Ao final, era salvo pelo pai.>
Não sinto falta da infância, nem mesmo da adolescência, apesar dos bons momentos em família e com amigos. Talvez porque caminhasse no escuro, tateando em busca de uma luz para meus>
questionamentos pueris e meus sentimentos difusos e intensos demais para uma criança daquela idade. Aos poucos, fui encontrando um caminho. Tortuoso, traiçoeiro, mas mesmo assim um caminho. Foi assim que cheguei até aqui.>