Os ícones abatidos

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  • Paulo Sales

Publicado em 14 de setembro de 2020 às 05:00

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John Lennon morreu em 1980, quando eu tinha 10 anos. Ele estava com 40. No próximo mês, Lennon se tornaria um respeitável octagenário. Uma idade perfeitamente plausível de se alcançar, que o digam os dois remanescentes dos quatro rapazes de Liverpool, Paul McCartney e Ringo Starr, seus companheiros de geração. Lembro da notícia nos telejornais da época e dos comentários sobre a sua importância para a música e a cultura do século 20. Comparavam-no a Elvis Presley, morto três anos antes, e parecia evidente que se tratava de uma perda ainda mais significativa. Eu nem sabia quem era John Lennon, embora já tivesse ouvido as canções dos Beatles.

Ao longo dessas últimas quatro décadas eu adolesci, virei homem feito e hoje olho a idade em que Lennon morreu pelo retrovisor. Mas, nas minhas reminiscências de garoto, lembro que chegar aos 40 anos era quase como chegar a outro planeta. Anos depois, quando Cazuza foi embora ainda mais novo, aos 32 anos, a sensação para mim, então com 20, ainda era de algo remoto, como um ponto vagamente luminoso no céu escuro. Mesmo quando Renato Russo morreu, aos 36 anos, eu tinha só 10 a menos e ainda assim parecia um clarão distante.

Hoje percebo o quanto eram, todos eles, absurdamente novos. Se as balas ou o vírus não tivessem feito o trabalho sujo, provavelmente estariam ativos, atuando como protagonistas relevantes nesta sombria segunda década do século 21 em que nos metemos. Quando morreu, Lennon era um ativista e tanto, como se percebe no excelente documentário Os EUA x John Lennon, de David Leaf. Um homem de ideias e de ação, que usava a própria notoriedade para levantar questões cruciais da sua época de maneira corajosa, espalhafatosa e incisiva.

Sim, 40 anos de idade. É quase um soluço, um tropeção, um nada na trajetória do mundo. Lembro de uma cena particularmente comovente do filme Antes do Amanhecer, de Richard Linklater: é quando Céline (Julie Delpy) está com Jesse (Ethan Hawke) num cemitério em Viena que ela havia visitado quando criança, e lá revê o túmulo de uma garota morta aos 13 anos. Enquanto Céline chegou aos 20, a garotinha permaneceu com 13. Ou seja: algo de muito precioso lhe foi roubado. Como foi roubado de Lennon quando o demente do Mark Chapman descarregou o revólver sobre seu corpo.

Scott Fitzgerald uma vez escreveu: “Aos 18 anos, nossas convicções são colinas de onde contemplamos o horizonte; aos 45, são cavernas em que nos escondemos”. Não sei se concordo com ele. Aos 50 anos, não me vejo encerrado numa caverna, já que parte das minhas convicções não se encontram definitivamente sedimentadas e seguem mudando ao sabor das estações. Duvido que tenha sido diferente com Lennon. Pouco antes de se virar para atender ao chamado do seu assassino, ele devia contemplar o mundo do alto de uma colina, com todo seu tenebroso esplendor: um lugar injusto e violento, mas também belo e aconchegante. Ou, para ser mais direto, um lugar do qual ele não gostaria de se despedir tão cedo.