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Paulo Sales
Publicado em 18 de novembro de 2019 às 05:00
- Atualizado há um ano
Em meio ao caos que se instalou na Bolívia na semana passada, surgiu o rumor de que a biblioteca do então vice-presidente, Alvaro García Linera, teria sido incendiada. O boato não foi confirmado, e os mais de 30 mil livros do político e intelectual boliviano permanecem intactos, ao menos por enquanto. Linera se exilou após o golpe no México, junto com Evo Morales. Imagino a sua dor ao deixar para trás o país real e o imaginário, aquele composto pelos livros e todo o arsenal de memória, sentimento e erudição que eles encerram. Porque os livros de certa forma contam a nossa história. Como diria Borges, “somos todo o passado, somos nosso sangue, somos as pessoas que vimos morrer, somos os livros que nos melhoraram”.
Queimar livros é apagar o passado, a consciência, o imaginário coletivo e iluminar a barbárie e a ignorância. É desolador pensar que alguém em sã consciência (artigo raro em tempos de radicalismo) seja capaz de destruir um monumento da estatura de uma biblioteca de 30 mil livros. Mas a história é pródiga em episódios do tipo, cujo momento mais fulgurante foi a grande fogueira de papel na Alemanha nazista. Logo a Alemanha, que nos legou Goethe, Mann e Brecht, entre tantos.
Observo minha modesta biblioteca, composta de pouco mais de mil volumes. Nas prateleiras atulhadas estão livros que guardo desde a infância, ao lado dos que foram ganhando relevância à medida que me lançava à maturidade. Um livro de bolso de A Máquina do Tempo que ganhei aos 11 anos guarda a dedicatória de uma tia, profetizando equivocadamente que eu nasci escritor. Em outra dedicatória, num volume de Os Funerais da Mamãe Grande, um amigo me deseja “uma vida longa e boa e muito picolé de limão”. Já outro amigo, numa bela edição em espanhol do Dom Quixote, escreve que o livro é um desafio à minha “coragem, inteligência e falta do que fazer”.
Há muitos volumes pelos quais nutro um afeto genuíno. O On The Road desgastado pelo uso e por sucessivas viagens, as obras de Hemingway, Roth, Márquez e Fitzgerald, os poemas de Pessoa, Gullar e Bandeira. Existem ainda os que esperam há décadas o momento de serem devassados. Aconteceu recentemente com uma velha edição de Ao Deus Desconhecido, de Steinbeck, comprada em 1991, num sebo em São Paulo, e lida apenas em 2015. Ele esperou quase 25 anos, enfrentando mudanças de casa e cidade e envelhecendo em silêncio. Outros vão sobreviver à minha ausência.
Como não ofereço risco ao país, dificilmente minha biblioteca será alvo de milicianos piromaníacos. Provavelmente, daqui a uns 80 anos, ela irá parar em algum sebo – se é que ainda existirão sebos – ou numa caixa esquecida no porão de algum descendente. Pensando bem, é quase como se virasse cinzas.
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Enquanto escrevia esta coluna, mais um assassinato terrível acontecia no Rio de Janeiro. Kettelen, de 5 anos, foi baleada por homens que estavam dentro de um carro em Realengo. Morreu de forma gratuita e tola, como quem dorme. Este país é um projeto fracassado