'Os personagens que nos representam estão aqui. Somos nós', diz Djamila Ribeiro na Flica

Filósofa participou de mesa, junto com a socióloga norte-americana Patricia Hill Collins

  • Foto do(a) author(a) Naiana Ribeiro
  • Naiana Ribeiro

Publicado em 13 de outubro de 2018 às 20:43

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Ricardo Prado/Divulgação

Ainda na infância, as estudantes de Letras Vernáculas e professoras Caroline Souza, 22 anos, Tiala Queiroz, 36, e Jaine Vieira, 24, sentiam na pele a falta de representatividade na literatura. Também não viam negras nos brinquedos, nas revistas, nas propagandas e muito menos na TV. Hoje, já adultas, as três têm lutado diariamente para conquistar mais visibilidade e, é claro, não estão sozinhas.

Assim como elas, a escritora mineira Conceição Evaristo, 71 anos, a filósofa Djamila Ribeiro, 38, e a socióloga americana Patricia Hill Collins, 70 - destaques na programação da Festa Internacional Literária de Cachoeira (Flica) neste sábado (13) - passaram e ainda vivenciam isso. Conceição Evaristo é a homenageada da Flica em 2018.

Hoje, elas são apenas algumas das mulheres que têm enfrentado os padrões e preconceitos da sociedade e usado o poder da escrita para fazer questionamentos e reflexões, contribuindo para que as mulheres - sobretudo as negras - tenham cada vez mais visibilidade no mundo e na literatura. 

"Nós, mulheres, precisamos ser vistas. E quem é preta ainda mais. Por mais que a gente discuta literatura nas universidades, nas escolas, percebemos que não há uma presença tão forte e efetiva dessas mulheres e principalmente de escritoras negras no nosso dia a dia", pontuou Jaine.

Para ela, nossa sociedade é patriarcal e machista e, por muitos anos, invisibilizou as mulheres. "Somos moldados por estereótipos que dizem como você tem que ser. Por que eu não posso ser a mulher negra que sou, do jeito que eu sou, com a minha essência e raízes? Por que tenho que seguir algo que alguém determinou?", questionou a professora.  As professoras Caroline, Tiala e Jaine acreditam que as mulheres negras ainda não têm representatividade nas obras (Foto: Naiana Ribeiro/CORREIO) Caroline completa que, apesar das discussões em torno do empoderamento feminino e da negritude estarem cada vez mais fortes, "as mulheres negras ainda não têm representatividade nas obras literárias". Essas, inclusive, foram algumas das questões discutidas por Djamila e Patricia na mesa ‘Onde vivem as Personagens que nos Representam’, com mediação da professora de Literatura Brasileira da Ufba Florentina Souza, e que lotou o Claustro do Convento do Carmo neste sábado (13).

Protagonistas "Os personagens que nos representam estão aqui. Somos nós", destacou Djamila, em sua fala. A professora de Sociologia Patricia Hill Collins concordou: "Não consigo imaginar ninguém melhor para representar a mulher negra do que ela mesma. A representação envolve a gente falar sobre nós mesmas e dialogar, para depois ir para o outro grupo". Djamila RIbeiro lotou o Claustro do Convento do Carmo (Foto: Ricardo Prado/Divulgação) Elas também comentaram que as negras continuam sendo representadas de forma deturpada. "A nossa humanidade não é reconhecida. Somos sempre as mulatas, as boas de cama, as mães pretas. Por isso é importante que nós sejamos protagonistas da nossa história. Inclusive, é importante a gente entender a nossa diversidade como uma forma de descolonização. Não somos apenas 'o negro', temos conflitos geracionais, diferentes religiões, gostos, etc", falou Djamila.

A filósofa contou que não usa só mulheres negras como referências: "Busco as pretas, mas também as pessoas que estão pensando o mundo, sempre lembrando que o branco sempre foi colocado como um sujeito universal, o que não é verdade". Patricia ressaltou que quem é branco "pode testemunhar a partir do que vê, mas tem que lembrar que não é a sua experiência". A mesa com a socióloga norte-americana Patricia Hill Collins e com a filósofa brasileira Djamila Ribeiro foi mediada pela professora de Literatura da Ufba Florentina Souza (Foto: Ricardo Prado/Divulgação) Homenageada O sábado (13) também foi marcado por um bate-papo com a homenageada da Flica, Conceição Evaristo. “Quero que o público possa conhecer outras autoras negras. É um passo em direção à democratização. Essa homenagem é uma deferência a todas as mulheres negras que estão lutando e procurando se afirmar. E também àquelas não-alfabetizadas, que trilharam um caminho pra gente percorrer”, destacou.

Apesar da crescente representatividade de mulheres, Conceição diz que a literatura brasileira é racista. “O imaginário literário negro suaviza uma literatura racista, com expressões como ‘mãe preta’. Quando não é mãe preta, a personagem é sexualizada”, exemplificou.

Ovacionada pelo público, a escritora falou ainda sobre suas inspirações, carreira e, claro, sobre feminismo. “Existem muitas discussões entre o feminismo negro e o branco. O que acho importante destacar é que as mulheres descendentes de africanas já estavam na rua desde o princípio”, afirmou.

Apesar de ter um grande reconhecimento hoje em dia, ela lembrou da sua longa trajetória. "É muito recente a visibilidade das mulheres negras nesses lugares. A trajetória das mulheres negras na literatura é muito dolorosa em termos de reconhecimento. Foi uma grande dificuldade me afirmar como escritora na literatura”, completou ela, destacando que os primeiros lugares que receberam seus textos, inclusive, foram os movimentos sociais: “Se hoje tenho visibilidade, não posso nunca esquecer desse caminho”.  A escritora mineira Conceição Evaristo é a homenageada desta ano na Flica; ela participou de bato-papo (Foto: Ricardo Prado/Divulgação) Para a professora Tiala, a homenagem para Conceição Evaristo é sinônimo de representatividade para mulheres e pretas. "Acho muito importante dar a visibilidade em vida para uma mulher negra que leva para a literatura - e consequentemente para a sociedade - as nossas histórias, vivências e a nossa realidade. Assim como muitas de nós, ela tem origem pobre e difícil e mostra que é possível lutar através das atitudes e das palavras", afirma a professora.

Representatividade Ela considera que autoras como Conceição e Djamila têm um papel muito importante para que outras mulheres pretas possam trilhar seus próprios caminhos: "Queremos o nosso lugar de fala enquanto mulheres, enquanto negras. Se não subvertemos a essa luta toda juntas, não vamos conseguir adentrar verdadeiramente em espaços como o literário e qualquer outro. Temos que abraçar essa luta enquanto mulheres e mostrar que somos capazes - que temos voz e pensamentos, além de ações, principalmente. É isso que elas vêm fazendo".

Segundo a jornalista Malu Fontes, mediadora da primeira mesa do dia, que teve presença de Eliane Brum, não é à toa que a Flica acontece em uma cidade histórica que tem quase toda a sua população negra. "Boa parte do público da Festa, inclusive, é formado por mulheres negras", ressaltou a colunista do CORREIO. O Claustro do Convento do Carmo, em Cachoeira, ficou lotado para a mesa esta tarde (Foto: Ricardo Prado/Divulgação) A curadoria da Flica - que é realizada pela iContent e Cali e tem patrocínio do governo do estado, apoio da prefeitura de Cachoeira, Caixa e governo federal - acertou em cheio quando escolheu representantes femininas e negras para protagonizar o evento. "A mensagem que ficou foi a de que todo mundo merece ter espaço, independente de raça, gênero, religião, etc. Aqui não é um espaço limitado: você encontra livros de mulheres brancas, negras, para crianças, para todo mundo, sem exclusão. Todo mundo aqui está sendo abraçado", resumiu Jaine.

Veja programação:

Domingo, 14 de outubroMesa 10 – 10h Diálogos Insubmissos de Mulheres Negras Coletivo Zeferinas, Florentina Souza e Manuela Barbosa Mediação: Dayse Sacramento

Fliquinha 2018 A programação infantil da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), a Fliquinha, teve uma novidade nessa edição de 2018: foi a primeira vez que o evento contou com uma atração internacional, o ilustrador argentino Gusti. Além disso, as atividades incluem sessões de cinema, apresentações musicais e teatrais, contação de histórias e mais. 

Domingo (14 de outubro) Apresentação 22 [9h30 às 10h30] – Espetáculo musical Quabales O projeto sócio-cultural Quabales, idealizado por Marivaldo dos Santos e Fernanda Mello, tem como objetivo a inclusão de adolescentes e jovens do bairro Nordeste de Amaralina, usando a música e a arte como ferramenta de transformação social.

ServiçoO quê: Festa Literária Internacional de Cachoeira – Flica 2018Quando: De quinta (11) a domingo (14)Onde: Cachoeira Quanto: Gratuito Informações: www.flica.com.br