Pacientes renais relatam contaminação por alumínio em mais de 30 pessoas durante hemodiálise

Funcionário teria fraudado laudos sobre a purificação da água e acabou demitido

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  • Bruno Wendel

Publicado em 22 de outubro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Bruno Wendel/ CORREIO

A deformidade no braço direito de dona Sandra não foi a única marca presente no tratamento da hemodiálise – procedimento em que uma máquina limpa e filtra o sangue. Ainda no seu corpo, circulam no sangue níveis elevados de alumínio, metal que não tem função biológica, mas, quando absorvido em grande quantidade, pode levar à morte. Ela e ao menos 32 pacientes foram contaminados no início do primeiro semestre deste ano, durante o tratamento na DaVita Serviços de Nefrologia Salvador, no bairro de Caminho de Areia. A clínica faz parte de uma rede internacional líder no tratamento de pacientes com doença renal grave.

De acordo com determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o limite de alumínio é de 10 microgramas por litro (µg/l). O CORREIO teve acesso, com exclusividade, ao resultado de um exame realizado em 32 pacientes da DaVita no laboratório de análises da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Salvador. Na lista, constam os nomes de homens e mulheres com os níveis de contaminação que variam de 101,37 (µg/l) a 220,78 (µg/l). A coleta aconteceu entre os dias 29 de maio e 4 de junho deste ano.

O nome de Sandra Maria Reis, 50 anos, não está na lista, mas, segundo ela, exames médicos realizados pela própria DaVita apontam que o seu corpo apresenta 100 µg/l – número dez vezes maior que o permitido. A exclusão do nome de Sandra evidencia um outro problema relatado por ela e outros doentes entrevistados: o número pode chegar a 150 contaminados pelo metal. Também doente renal, Sandra Maria Reis mostra a foto do marido Gilson, que morreu em agosto (Foto: Marina Silva/ CORREIO) Também doente renal, o marido de Sandra, Gilson de Jesus Silva, 46, faleceu no dia 18 de agosto deste ano. Ele é um dos nomes da lista que mostra o nível de contaminação por alumínio. “O atestado de óbito deu múltipla falência dos órgãos, mas não diz o que causou a morte. Acredito que tenha a ver com o excesso do alumínio”, diz Sandra.

Um processo que tramita na 18ª Vara de Relações de Consumo da Comarca de Salvador já garantiu a 18 pacientes a continuidade do tratamento na DaVita. A ação visa também uma reparação por dano moral no valor total de R$ 5,1 milhões. A audiência está marcada para o dia 29 de novembro, às 11h, no Fórum Rui Barbosa.

O Ministério Público do Estado (MP-BA) informou que existe um procedimento instaurado pela promotora Cláudia Elpídio. “O caso está sendo apurado. Representantes da Clínica DaVita foram oficializados a prestar esclarecimentos e o MP solicitou diligências para os órgãos de fiscalização, como a Vigilância Sanitária. Após receber e apreciar todas as informações solicitadas, será decidido que providências serão tomadas pelo MP”, diz a nota do órgão.

 O começo O exame de Cintia Carla da Silva Gomes, 41, uma das pacientes contaminadas, apontou 74,6 (µg/l) de alumínio no corpo. Ela faz parte de um grupo de pacientes autores de um dos processos movidos contra a DaVita.

Em maio, os sintomas começaram a aparecer. “Faço hemodiálise há seis anos e nunca havia passado por isso. Há sete meses, comecei a sentir dores por todo o corpo, ao mesmo tempo que a perder colegas de tratamento e não estávamos tendo retorno da clínica do que estava acontecendo. Uma turma se mobilizou para pedir uma satisfação. Foi aí que abriram o jogo e disseram que adquirimos o alumínio durante o tratamento”, disse ela.

O alumínio teria sido inserido no corpo dos pacientes depois de uma falha de um funcionário da DaVita. “Depois dessa reunião, os médicos passaram a chamar os pacientes de forma individual numa sala para dizer que a contaminação foi uma falha do técnico da máquina que faz a osmose, que é o tratamento da água para o processo da hemodiálise e esse técnico estava fraudando os laudos de purificação da água”, relatou Cíntia.

Ainda de acordo com ela, a empresa disse, na ocasião, que o funcionário cometia a fraude para não ter o trabalho de fazer os testes diários na água e que, por isso, foi demitido por justa causa.

O alumínio é excretado essencialmente pelo rim. Logo, os doentes com doença renal crônica podem sofrer acumulação, com consequente intoxicação pelo metal. Os principais sinais dessa intoxicação pelo alumínio são: anemia, neurotoxicidade aguda (ocorre quando a exposição a substâncias tóxicas naturais ou artificiais, chamadas neurotoxinas, altera a atividade normal do sistema nervoso); ataxia (incapacidade de coordenação dos movimentos); perda de memória; demência de diálise (alterações psiquiátricas, demência progressiva, desordens de linguagem etc.); fraturas espontâneas; doença óssea; confusão mental; fortes convulsões e coma.

Constatado o alto nível de alumínio nos pacientes, a DaVita iniciou um tratamento à base de Desferal, medicamento que contém a substância ativa desferroxamina. O remédio é usado para remover o excesso de ferro ou alumínio do organismo. Os pacientes ouvidos pelo CORREIO relatam, no entanto, inchaços e outros problemas com o uso da medicação.

“A gente começa a sentir muitas dores no corpo, disseram que era uma virose, aí depois que avisaram que a gente teria que tomar um medicamento, o Desferal, cuja reação é compatível a uma sessão de quimioterapia e foi necessário a gente fazer o uso 12 vezes para ver se vai ter a baixa de alumínio, para daqui a 30 dias, repetir o exame. Só que, tomando o Desferal, está todo mundo com inchaços, e os óbitos não deixaram de acontecer”, declarou Gildelita Firmino, 45. Um dos seus exames apontou 99 µg/l no organismo dela.

Por causa do uso do Desferal, Gildelita enfrenta outro problema. “Eu fiz uma cirurgia para retirar a glândula da tireoide, porque desenvolvi doença óssea. Por conta da contaminação do alumínio, corro o risco de fazer essa cirurgia novamente. O uso do Desferal devastou meu organismo e aumentou as glândulas da tireoide no sangue. Hoje tenho fraqueza, tontura, indisposição, visão afetada e fraqueza na memória”, relatou ela.

Internados Também paciente vítima da contaminação durante tratamento de hemodiálise na DaVita, Luiz Gonzada da Silva, 85, está internado no Hospital Ernesto Simões Filho, no Pau Miúdo. “Esta é a terceira vez. Ele deu entrada no dia 27 de setembro. Meu pai teve 135 µg/l de alumínio. Altíssimo. Por conta disso, não enxerga, não escuta e nem anda. Não toma banho só, não come só. Já teve mais de 20 crises convulsivas. Ele fazia o tratamento no Hospital Roberto Santos. Ficou quatro meses e foi pelo SUS para a DaVita em setembro do ano passado. No meado de maio a junho, meu pai começou a cair, crises convulsivas e teve várias paradas na emergência”, contou a filha Magnólia Maria da Silva, 46. 

Já Marcos Santos Costa, 50, está internado no Hospital Teresa de Lisieux desde junho. “Ele está pegando infecção direto. Falei do alumínio, que nele deu 58 µg/l, e um médico disse que vai investigar. Outro dia ele teve perda de memória e vem tendo fraqueza nas pernas e vômitos. Ele começou a hemodiálise na DaVita em setembro do ano passado. Até a contaminação com alumínio, não tinha nada de internamento, não viva andando em hospital. Depois da contaminação, a vida de todo mundo mudou”, relatou a mulher dele, Josefa Rocha dos Santos, 50 anos.

Explicações Em nota, a DaVita informou que “segue rígidos protocolos internos para o tratamento da água utilizada em suas unidades”. Disse ainda que tomou as providências necessárias, como apoio psicológico, assistência social às famílias e subsídio para despesas relacionadas a tratamentos, medicação e suporte, “tão logo tomou conhecimento de que seus pacientes apresentaram alterações em seus sintomas”.

A nota encerra dizendo que “os órgãos reguladores foram comunicados e estão cientes de todos os encaminhamentos. A empresa DaVita Tratamento Renal se colocou à disposição para prestar os esclarecimentos adicionais que se fizerem necessários, reiterando seu compromisso com atendimento humanizado e acolhimento aos pacientes”.

O CORREIO também procurou a Secretaria Estadual da Saúde (Sesab). A Diretoria de Vigilância Sanitária e Saúde Ambiental (Divisa), ligada à pasta, esclareceu que a empresa DaVita “realizou uma notificação de Evento Adverso em 6 de junho de 2019”.

Nos dias 8, 18 e 19 de junho, uma equipe técnica da Divisa realizou inspeções na clínica, “onde analisou os registros apresentados e prontuários”. Mas, “dentro do seu campo de atuação, a Divisa não pode estabelecer nexo causal entre os casos e os resultados laboratoriais”. “Vale ressaltar que a empresa se encontra em monitoramento por equipe técnica especializada em hemodiálise”, encerra nota.