Padre desabafa após onda de violência em Saramandaia: 'Respiramos por horas um terror horrível'

Em carta, sacerdote católico defendeu a comunidade e disse que a pior violência vem do racismo e da desigualdade: ‘Saramandaia não se resume a isso’

  • Foto do(a) author(a) Alexandre Lyrio
  • Alexandre Lyrio

Publicado em 28 de junho de 2020 às 14:50

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Nara Gentil/Arquivo CORREIO

Padre Jonathan: 'Nosso bairro tem um povo de paz e bem' (Foto: Divulgação) Em um depoimento sensível, o padre Jonathan de Jesus, pároco da Igreja de São Francisco de Assis, no bairro de Saramandaia, divulgou uma carta por um aplicativo de mensagens em que lamentou a onda de violência vivida pelo bairro na última semana. O desabafo se deu dois dias depois de, segundo moradores, traficantes do Nordeste de Amaralina tentarem tomar o ponto de drogas da Saramandaia. Uma operação da polícia terminou com três suspeitos mortos, além de um morador e um policial baleados.   

O padre nem mesmo chegou a falar da criminalidade ou sequer citou qualquer disputa entre traficantes na sua carta. Apenas confirmou os momentos de tensão vividos na última terça-feira, véspera do São João. Sua maior preocupação, na verdade, é que a comunidade seja alvo de preconceito. Jonathan destacou que, independentemente do tráfico, a maior violência sofrida diariamente pela população são problemas como a falta de saneamento, de mobilidade urbana e o racismo.

A intenção do padre com a carta era responder em um texto único às diversas pessoas que mandavam mensagens preocupadas com a situação. No desabafo, o sacerdote não detalhou o que ocorreu exatamente ou onde ele estava na hora da troca de tiros. Narra apenas que “respiramos por horas um terror terrível” e disse ter rezado com fé.“De fato, foi um momento difícil para todos nós pois ninguém deve se acostumar com a violência. Respiramos por horas um terror horrível, mas acompanhados pela força que transcende tudo, a oração”, escreveu padre Jonathan.Apesar de lamentar os momentos de violência, o padre defendeu a comunidade e o bairro. Lembrou que a região é, na grande maioria, ocupada por gente de bem, famílias zelosas e cheias de alegria. “Em Saramandaia encontramos um povo bom, de Paz e de Bem. Homens e mulheres, pais e mães de família, avós zelosos, crianças maravilhosas e um clima sempre de alegria e disposição”.  

Um dos receios do padre é de que a comunidade sofra ainda mais por conta da fama de violência. “Como pastor deste povo que muito amo e morador da comunidade de Saramandaia, com muito orgulho, temo que cresça o preconceito, que já existe deste lugar que moramos e vivemos e sua população. Quero lembrar que Saramandaia não se resume a acontecidos aterrorizantes, não, não (...) não podemos delinear nossa realidade a partir de um fato”. Idoso foi baleado dentro de casa durante operação; segundo família, policial civil e o confundiu e atirou (Foto: Nara Gentil/Arquivo CORREIO) O padre destacou que, no final das contas, as maiores violências sofridas pela população são, além do preconceito, a falta de saneamento básico, a dificuldade de mobilidade urbana, o racismo e a desigualdade social.  “Isso sim nos aterroriza durante todos os dias do ano”. E cobrou das autoridades. “Que os governantes olhem para nós com justiça e que supram as nossas necessidades não como um favor, mas utilizando as verbas arrecadadas com nossos impostos, que pagamos, para nos oferecer uma vida digna assim como de qualquer um outro que habite em qualquer bairro dessa cidade”.

A Arquidiocese de Salvador chegou a publicar a carta do padre em seus canais na Internet. Em contato com o CORREIO, o padre preferiu não detalhar o momentos de medo que viveu. Preferiu exaltar pontos positivos e destacar as principais dificuldades.“Saramandaia não é na sua constância aquilo. A nossa população não consegue emprego, o nosso comércio também enfrenta dificuldades por conta desse preconceito”, diz.A fama de violência, diz o padre, recai, inclusive, diretamente sobre a paróquia, que está com problemas no telhado e fiações elétricas. “Tem sido difícil captar recursos porque a nossa paróquia é desvalorizada por esse preconceito. Meu povo é carente!”,

Depois do ocorrido, padre Jonathan promoveu nesse sábado, às 19h, um rosário pela paz transmitido em um canal no YouTube. Nesse domingo (28), ocorrerá um encontro ecumênico com lideranças evangélicas para discutir o assunto. “Não é o meu papel criticar a criminalidade ou a polícia. Eu sou um promotor de paz”, ressaltou.

Medo Moradores ouvidos pelo CORREIO relatam conviver com o clima de medo e com toques de recolher desde que o fato ocorreu. “A sensação é de medo, de terror. Ontem, às 21h, quando fui para minha casa, estava tudo fechado, não tinha um pé de gente na rua. Chamei por Deus e segui em frente”, narrou um dos moradores, sem se identificar. O morador ferido na operação policial, inclusive, teria sido baleado pela própria polícia, denunciaram familiares.

Segundo parentes de Almir Ferreira Paiva, o idoso baleado, um dos bandidos arrombou a casa para tentar escapar dos policiais. O policial civil que vinha logo atrás confundiu o idoso com o criminoso e acertou três tiros no morador. Almir foi levado para o Hospital Geral do Estado (HGE), passou por cirurgia e seu estado de saúde é estável.

O delegado Marcelo Tannus, titular do Grupo Especial de Repressão a Roubos em Coletivos (Gerrc), que participou da operação, informou que os criminosos são suspeitos de fazer parte de uma quadrilha de traficantes do Nordeste de Amaralina. Com eles, a polícia apreendeu duas espingardas calibre 12, uma pistola Glock adaptada para disparar rajadas, munições de diversos calibres, coletes antibalísticos, além de 100 trouxas de maconha e uma balança.