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Da Redação
Publicado em 5 de setembro de 2021 às 06:30
- Atualizado há 2 anos
Foto: Reprodução As pichações com inscrições “Bolsonaro 17” nas paredes da Rua Ana Mariani Bittencourt, na região da Goméia de São Caetano, podem amedrontar mais que a possibilidade de um assalto no local – amigos da época da escola me relatam o aumento da insegurança –, mas fica a dica que (co)existem, ali mesmo, muitas possibilidades de pedido de proteção divina.>
O cardápio da salvação é bastante diversificado para um trecho de apenas 200 metros: à esquerda de quem entra tem Igreja Católica, Centro Espírita, Irmandade Mística, Igreja Evangélica e até UPA! Detalhe é que passando tudo isso, tu vai bater de frente com a Nova Jerusalém Materiais de Construção, que é uma espécie de explicação para tudo que foi construído antes.>
Caso decida perseverar no caminho e percorrer outros 200 metros, vai encontrar um disco voador estacionário. Não dá pra pedir proteção extraterrena, suponho, porque na verdade é um reservatório da Embasa, mas trago a palavra da salvação: era exatamente ali que, quase um século atrás, funcionava o primeiro grande terreiro comandado por Joãozinho da Goméia, “O Rei do Candomblé”. >
Este caso ocorreu durante a celebração da Festa de Reis, quando Padre Pinto deu na telha de celebrar a santa missa todo maquiado, com trajes de guerreiro indígena e de Oxum, orixá das águas doces.>
Bom, a mais célebre polêmica envolvendo Joãozinho da Goméia – cujo antigo terreiro hoje é território de águas doces – também envolve uma festa tradicional de começo de ano. Era o Carnaval de 1956, no Rio, quando Joãozinho chocou o povo-de-santo ao aparecer fantasiado de vedete Arlete. Foi, igualmente, manchete de vários jornais e revistas do país, como também nas vezes em que, como Padre Pinto, emulou outros cultos no seu próprio, incluindo encantados indígenas.>
Em entrevista a um repórter de O Cruzeiro, a revista mais importante do país na época, chegou a ser questionado se sua fantasia infringia as regras do candomblé. “De maneira nenhuma, meu amigo. Primeiro, porque antes de brincar eu pedi licença ao meu guia. Segundo, porque o fato de eu ter me fantasiado de mulher não implica desrespeito ao meu culto, que é uma Suíça de democracia. Os orixás sabem que a gente é feito de carne e osso e toleram, superiormente, as inerências da nossa condição humana, desde que não abusemos do livre arbítrio”, devolveu.Polos de atração Apesar das críticas e resistências, tanto o padre quanto o babalorixá tiveram suas vidas marcadas por questões que vão além da ousadia e alegria: são reconhecidamente polos de atração de pessoas, seguidores para suas respectivas missões de fé. >
No caso de Padre Pinto, seu empenho podia ser visto na revitalização da Festa de Reis, na Lapinha, estendida à sua pregação por respeito às diferenças de crença: muitos fiéis voltaram, animados com as missas criativas, homilias irreverentes, fé na rapaziada.>
Faleceu após alguns anos ‘escondido’ das polêmicas, na Paróquia São Caetano da Divina Providência, dona da torre quadrada que abre a Rua Ana Mariani – igreja que por sinal eu frequentei e baguncei mais novo. Antes, estudei nos colégios Pedro Ribeiro e Pinto de Carvalho, que ficam no lado oposto aos mencionados templos da via ecumênica.>
Sobre Joãozinho, seu trabalho a partir de São Caetano também fez uma multidão acessar o sagrado. O primeiro terreiro, num local chamado Ladeira de Pedra, logo ficou pequeno e ele foi para a Goméia. Com a anuência do caboclo Pedra Preta, levou o nome da localidade de São Caetano para Duque de Caxias, no Rio, onde ganhou o Brasil e o mundo.>
O Terreiro da Goméia de lá (hoje destruído, mas em processo de tombamento) ganhou notoriedade pelas visitas de grandes personalidades, incluindo políticos influentes. Conta-se que João costumava receber presidentes da República e recepcionou até a Rainha Elizabeth II, antes dela ser coroada. A majestade no encontro, portanto, era o baiano. Grande Rio foi vice-campeã do Carnaval 2020 com enredo “Tata Londirá: o canto do caboclo no quilombo de Caxias”, sobre Joãozinho (Foto: RioTur/Divulgação) No último Carnaval carioca, Joãozinho foi tema da Grande Rio, que só não levou o estandarte porque o título já estava em casa: a Viradouro venceu homenageando as Ganhadeiras de Itapuã. Este ano, ganhou diversas homenagens por conta dos 50 anos de sua morte, e vai ganhar um texto exclusivo nessa coluna.>
Pontos altos Aliás, o texto sobre ele já seria hoje, se eu não me atentasse (a tempo) de que as duas construções mais altas de San Keite são, de alguma forma, ligadas a figuras tão grandes e, como eles faziam questão de ser, marcantes, visíveis, presentes. >
Além de poder ser vistas de vários pontos, cheguei à conclusão que elas meio que se olham, admiradas, mas não consegui extrair mais poesia que isso. Talvez não seja preciso perfumar a flor.>
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Mas para compensar a ‘falta’ com meu xará Joãozinho, que teve a homenagem adiada, pedi uma reflexão ao nosso xará João Faustino, pedagogo, historiador, Egbome do Ilê Axé Babá Omim Guiã, em Itaparica, e Baba Egbé do IIê Axé Odé Babá Ati Olubalami, em Simões Filho. O desafio ao meu amigo, com quem estudei no Pedro Ribeiro, foi explicar o simbolismo da presença da água naquele que foi o primeiro trono do ‘Rei do Candomblé’.>
“As águas purificam qualquer ambiente e é essencial à vitalidade. Onde existe a caixa d’água, hoje, marca o ponto da existência do sagrado, do terreiro do saudoso Joãozinho da Goméia. O axé plantado ali é único e sempre será vindouro! Salve o axé da Goméia, viva Joãozinho em toda a sua ancestralidade!” Viva, João!>