Paloma, pão-de-ló e duas gotas de água de flor de laranjeira

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  • Da Redação

Publicado em 17 de abril de 2022 às 17:09

- Atualizado há um ano

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A primeira vez em que vi Paloma ela estava sentada num sofá de couro marrom rodeada por imprensa e nobres convidados, na noite em que aquela casa de sua meninice abria-se ao público como A Casa do Rio Vermelho, um memorial de vida e obra de seus pais, Jorge e Zélia.

Quando ela me viu, abriu um sorriso enorme e veio em minha direção, como quem encontra alguma coisa mais divertida pra fazer e me disse: "Olha, gêmeas de óculos!” E enquanto eu me sentia aquela que foi de branco para o casamento competindo com a noiva, ela ao contrário, parecia se divertir encontrando aquela outra mulher ousada o suficiente para ostentar enormes óculos de grau azul turquesa. Mergulhei pela casa, ávida pela experiência, enquanto ela manteve-se anfitriã na sala e nunca mais nos vimos, até que o meu filho virou amigo do seu neto, e eu de sua filha Cecília. E num belo dia, do nada, Bento volta de uma tarde por lá com dois livros que Paloma havia me mandado, carinhosamente autografados. Eu fiquei emocionadíssima e muito ensimesmada em mim mesma, afinal, a filha de Jorge E ZÉLIA havia me presenteado com duas obras da maior importância, tanto para a literatura brasileira quanto para a literatura gastronômica, uma vez que destaca a importância da comida em toda a obra do maior escritor brasileiro de todos os tempos, ao mesmo tempo em que traz a arte para a cozinha. Nada não, Paloma - que já tinha revisado toda a obra do pai – organizou todas as referências culinárias contidas nos 49 livros de Jorge.

Só as frutas renderam 206 páginas de histórias e receitas no As Frutas de Jorge Amado - ou O Livro de Delícias de Fadul Abdala; já o Comida Baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor - que ganhou segunda edição belíssima num tricô com a editora Panelinha de Rita Lobo - traz mais de 90 receitas da cozinha baiana amancebadas com os trechos das respectivas obras, nessa simbiose saliente, sensual, lasciva e libertina de literatura e comida tão próprias da obra de Jorge.

Paloma não faz idéia do quanto aqueles livros, assim recebidos num dia besta qualquer, me emocionaram. Ela que cresceu ao lado de Gabriela, Quincas, Dona Flor, Jubiabá, Pedro Archanjo, Nacib, Tereza Batista e tantos outros. Não pude conter um deslumbramento e uma certa charlação íntima. Os meus agradecimentos à distância e por escrito à época jamais expressariam a comoção da leitura da dedicatória em sinuosa e ampla caligrafia em vermelho, com ilustração de pitanga e tudo. Quem sabe hoje, seis anos depois, caso leia essa coluna, possa sentir o tamanho da minha alegria e gratidão. 

Não deve ser lá muito fácil trazer o sobrenome Amado na assinatura, mas o que seria de painho sem a revisão cuidadosa de toda a sua obra pela filha guardiã de sua memória; e o que seria da literatura  gastronômica brasileira sem o gosto do de comer e de beber que alimenta a todos os personagens que povoam a obra fundamental de Jorge, ao mesmo tempo em que contam boa parte da história da alimentação "baiana, romântica e sensual" ao longo de mais de 70 anos de obras publicadas.

Quantos perrengues e conchavos à mesa, quantas gulodices de amor, quantos rega-bofes festivos, quantas frutas, quantos cocos ralados de costas por Dona Flor, quantos doces de jaca de Cotinha (e ninguém dava nada por Cotinha), quantos cacaus, sapotis e araçás-mirins; quantas festas de largo, quantos acarajés, quanto mar, quanto rio; quanta feijoada, quanto sarapatel, quantos manuês, xeréns e munguzás; quanta peixada e pitu e moqueca de arraia; quanta paca, cotia, teiú: quanto maturi; quanto bolo de puba, quanta cocada; quanta feira de chão e quanta casa de farinha; quanto licor de jenipapo, quanto dendê, quanta pimenta, quanto cravo, quanta canela.

Tudo para depois jiboiar lambendo os beiços, que engordar em terra de Jorge “é psicológico”.

Resgatei os meus óculos azuis para escolher uma receita para ilustrar essa coluna, que tivesse o espírito simples e discretamente elegante de Paloma; uma receita boa para um chá imaginário entre nós, e não tive dúvida diante do Rocambole de Laranja à Minha Maneira, nada mais que um delicado pão-de-ló umedecido por fina calda de laranja, na qual ousei deitar algumas gotas de água de flor de laranjeira, com a benção desse menino Nacib. 

Obrigada, Paloma!

* Kátia Najara é cozinheira e empreendedora criativa do @piteu_cozinhafetiva