Passos de resistência: Caminhada Azoany enche ruas em homenagem a São Roque

Participantes foram do Pelourinho até a Igreja de São Roque e São Lázaro, na Federação

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  • Wendel de Novais

Publicado em 16 de agosto de 2022 às 15:29

. Crédito: Marina Silva/CORREIO
. por Marina Silva/CORREIO

O ponteiro do relógio nem precisou chegar às 13h para que o movimento de pessoas se iniciasse na Rua das Laranjeiras, no Pelourinho. Foi de lá que saiu, nesta terça-feira (16), a Caminhada Azoany, que há 24 anos é a principal homenagem do povo de Axé em Salvador para São Roque - representado no Candomblé por Obaluaê - na sua data, comemorada em todo dia 16 de agosto. Um agrado ao santo que, por três anos de pandemia, foi interrompido para evitar o contágio pela covid-19, mas voltou a acontecer. E se tem caminhada, tem também gente de branco, banho de pipoca e até lavagem das escadarias da igreja no fim do cortejo. 

Uma verdadeira festa, que desde a sua criação, percorre os seis quilômetros que separam o Pelourinho do bairro da Federação, onde fica a capela do santo homenageado, com muita devoção. Antônio Carlos Leal, 69 anos, devoto de São Roque que participa desde o primeiro cortejo, atesta isso. “São 24 anos de um caminhar de muito significado. É uma celebração em que eu e todos os devotos de São Roque se sentem bem em poder manifestar sua fé nele. Nos concentramos e caminhamos com uma energia muito forte. E dividimos isso com nossos amigos, irmãos e a comunidade no geral que sempre se reúne aqui”, fala Antônio, que é conhecido como Careca e só deixou de comparecer na caminhada duas vezes, quando esteve doente. 

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De resistência

Mais do que um ato religioso, a caminhada é, para todos os presentes, um levante de resistência. A baiana Ana Lúcia Oliveira, 53, deixa o tabuleiro guardado no dia 16 de agosto para fazer parte do cortejo há 18 anos. Ela diz que a razão do esforço tem a ver com representatividade. “É uma devoção importante para nós. Tem a missa na Igreja Rosário dos Pretos, a concentração e a caminhada. A tradição se repete e tem a participação das baianas com os balaios de pipoca, dos Pais e Mães de Santo, de Ogans e muita gente do Axé. É um percurso em que a gente ocupa as ruas com alegria, amor e paz. Sempre foi assim”, afirma Ana, que coordena o receptivo da festa feito pelas baianas há 10 anos. Missa na Igreja Rosário dos Pretos antecedeu a caminhada (Foto: Marina Silva/CORREIO) Albino Apolinário, 58, fundador da caminhada, explica que é justamente esse lugar que o cortejo queria ocupar quando fosse criado. Para ele, em 1998, faltava ver povo de Axé na rua manifestando sua fé e combatendo a intolerância religiosa. Agora, não falta mais. "As igrejas católicas e evangélicas faziam procissões e caminhadas, mas nós não. Colocamos nossa fé na rua também para combater a intolerância religiosa, dizer que existimos e dar a chance para que os nossos também manifestem aquilo que acreditam. Isso é a Caminhada Azoany. No começo, foi tímido, mas cresceu com o tempo  e virou isso tudo aqui”, explica ele, sem esconder a alegria pelo retorno. Albino fundou a Caminhada Azoany (Foto; Marina Silva/CORREIO) A caminhada começou com 200 pessoas fazendo o percurso no seu primeiro ato. Em 2019, última vez que aconteceu sem as restrições da covid-19, reuniu três mil devotos nas ruas. Nessa volta, agora em 2022, não repetiu o feito, mas encheu os lugares por onde passou. Rodolfo Ramos, 65, compareceu na primeira e não faltou também dessa vez. Ele confia que a caminhada vai voltar a ser como antes da pandemia. “Tudo para o povo de Axé é mais difícil. Enfrentamos intolerância e muitas barreiras, mas resistimos e aqui estamos novamente. Agora, vamos retomar e, mais uma vez, seguir crescendo em meio às dificuldades que aparecem”, prevê Rodolfo.

Na história

A Caminhada Azoany tem ligação direta com a celebração católica feita para São Roque. Tanto é que a procissão só sai da igreja após a chegada do cortejo que vem do centro da cidade. Uma relação entre as religiões que, segundo o historiador Rafael Dantas, é secular."Desde o Século XIX, é possível falar de uma aproximação entre as festividades católicas com os Orixás e os ritos das religiões africanas. Não temos muitos documentos sobre isso, mas relatos indicam a associação entre as religiões desde aquele momento. Porém, na época, não era permitido expressar a religiosidade afro, o que leva a crer que as festas acontecem no ambiente privado", indica Dantas. Aproximação entre religiões começou no Século XVIII (Foto: Marina Silva/CORREIO) Ainda de acordo com o historiador, a devoção à São Roque na região tem uma explicação geográfica com base no que era Salvador há três séculos. Ele aponta que o bairro da Federação se desenvolveu ao longo dos anos com a igreja do santo como seu grande referencial."Aquela região [da Federação] está inserida nos caminhos de Salvador, um lugar que, até o Século XIX, era um espaço com pouquíssimas casas. Por ali, na parte de cima, existia uma pequena comunidade que cresceu em volta da Igreja de São Lázaro, construída no Século XVIII com características de capela rural até hoje preservadas", completa ele.

São Lázaro  Todos os anos, nesta data, a homenagem é dupla. O dia marcado por celebrações a São Roque, também é para festejar São Lázaro, conhecido como o protetor contra doenças e pragas e representado por Omolu nas religiões afro-brasileiras.

Devota do Santo e regida por Omulu, Edvanda Santos, 58 anos, chegou cedinho a Igreja, assistiu a alvorada de fogos às 5h, a primeira missa às 5h30 e seguiu até a missa festiva celebrada às 15h pelo bispo auxiliar de Salvador Dom Walter Magno de Carvalho.

"São muitos de devoção e todas as vezes que eu piso aqui eu peço respeito para todas as religiões, porque é o que realmente importa. Isso ficou ainda mais claro depois de tudo que passamos com a pandemia", celebrou Edvanda. 

Durante a manhã, também ocorreram missas às 7h, 9h e 11h. Às 14h, quando o artista plástico Joel Cruz, 43 anos, chegou ao local, os devotos rezaram o terço. "De manhã eu não pude vir, mas o tempinho que sobrou eu fiz questão de aproveitar para comparecer, é aqui que eu me sinto completo", disse o devoto. 

Após os festejos da manhã e da tarde, o encerramento da celebração iniciou às 16h, com a procissão, seguida da solenidade às 17h.

*com colaboração de Emilly Tifanny Oliveira