Pelo direito de morrer, baianos vão até a cartórios declarar desejos para o fim

Aposentada proibiu intubação e homem diagnosticado com covid-19, com quadro irreversível, luta para passar os últimos dias em casa

Publicado em 24 de julho de 2021 às 04:52

- Atualizado há 10 meses

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Na mesa de centro da sala de estar do apartamento onde Iracema Duarte, 80 anos, mora sozinha, num bairro de luxo de Salvador, uma pasta verde guarda uma folha carimbada no dia 11 de setembro de 2001. É onde está impresso um desejo dela para os últimos dias de vida. “Fica terminantemente vedado o prolongamento de sua vida, por quaisquer meios e procedimentos médicos, principalmente intubação”, escreveu o tabelião.

Quando o corpo falhar, e nada mais possa ser feito, ela tem uma certeza: não quer nenhum procedimento que prolongue a chegada da morte. “Eu sei que terá fim. Isso nunca foi problema. Me aflige a vulnerabilidade das pessoas na mão dos outros”, conta ela, que já sofreu três infartos. Pelo direito de morrer naturalmente, a professora aposentada foi a um cartório de Salvador oficializar um documento em que está especificado como quer viver nos instantes finais. Trecho de Testamento Vital de Iracema (Foto: Fernanda Santana/CORREIO) A pandemia trouxe a morte para perto e cresce a vontade de pessoas de ter seus desejos respeitados até o fim. Ortotanásia é o nome que a Medicina deu para a morte natural, sem prolongamento nem abreviamento. “A morte foi chegando mais forte. Eu percebo que houve um aumento na busca de pessoas por deixar claras as suas vontades”, opina a advogada Luciana Dadalto, referência em testamento vital.

A pandemia fortalece, em Iracema, a convicção de que é preciso falar da morte enquanto se tem vida. O assunto faz parte da rotina dos hospitais.

Um levantamento feito pela equipe de medicina paliativa da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) mostra que, dos 600 pacientes com covid-19 que receberam cuidados paliativos desde maio do ano passado, 55 tinham vontades expressas sobre quais intervenções poderiam receber, sem que a morte fosse apenas alongada no tempo. A prolongação da morte por mediação de aparelhos é denominada "distanásia". 

Outros 59 estavam em fase de elaboração quando a morte chegou. Os detalhes das declarações não foram informados, mas nenhuma delas tratava de antecipar ou escolher a morte, ou escolher morrer, e sim de reconhecer que nada mais alcançaria a cura.

Na tarde em que recebeu a reportagem, Iracema disse querer morrer naquela casa decorada com móveis de madeira e se manter independente. A decisão foi tomada nos anos 80, quando ouvia o irmão médico relatar casos de pessoas internadas em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Antes de viajar para uma temporada em São Paulo, naquela época, ela comprou quatro túmulos para a família e, no retorno, documentou seu desejo.

O irmão dela, antes de falecer, em 2013, também declarou suas vontades em cartório. Ele queria estar em posse da consciência na hora de decidir quais eram seus limites. 

Desde 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) chama essa expressão de desejos como Diretivas Antecipadas de Vontade – também conhecidas como testamento vital. Elas podem ser registradas de três formas: em cartório, por R$ 159 – procedimento menos comum –, reveladas ao médico, que deve anotá-las no prontuário, ou à família e amigos mais próximos. 

A vontade do paciente deve, eticamente, prevalecer em qualquer caso, pois a recusa terapêutica é algo previsto por lei. Não há, contudo, fiscalização que garanta esse cumprimento.

'A vida tem beleza e o partir é só uma etapa' Há 15 dias, um paciente de 75 anos, com câncer em fase de metástase, sem chance de cura, chegou ao Hospital Espanhol, em Salvador. O idoso tinha sido diagnosticado com covid-19, na véspera, e uma das primeiras coisas que disse foi: “Não quero ser intubado”.

A intubação, que leva artificialmente ar aos pulmões, é um dos procedimentos mais comuns realizados em pacientes com quadros graves da covid. Ele sabia e não desejava isso. 

O desejo desse paciente, relatou a médica paliativista Karoline Apolônia, é passar o fim da vida em casa, sem sofrimento. Ela coordena, com Franklin Santos, o Programa de Cuidados Paliativos do Estado da Bahia e acompanha, de perto, pacientes que, expressamente, querem ser respeitados. Ao que tudo indica, o idoso poderá voltar para o lar na semana que vem.

Para casos como esse, de pacientes com coronavírus que especificam como querem ser tratados, as equipes iniciam uma corrida contra o tempo. Afinal, não basta liberar o paciente e respeitar seu desejo. É preciso garantir o bem-estar. Para a não intubação, por exemplo, pensam uma alternativa, como capacetes de ventilação.  Desejos dos pacientes precisam ser levados em consideração, defende médica (Foto: Arquivo AFP) Na pandemia, ela elenca três questões que podem se sobrepor ao desejo: a falta de ar que a doença provoca; a ausência de medicamentos como opióides, que auxiliam a respiração, e de suporte para garantir que não haverá sofrimento físico em casa, como a oferta de oxigênio; e o tempo de transmissibilidade do vírus, pois uma pessoa em fase terminal não pode ir para casa se ainda transmitir a doença.“Nós temos que garantir que a vontade do paciente não vai se sobrepor ao sofrimento. Muitas vezes, a gente não consegue respeitar a vontade, para evitar a agonização em casa”, explica.A equipe de saúde também precisa reavaliar, o tempo todo, as próprias dificuldades de lidar com a morte. “A morte é um tabu para a gente também e as equipes têm suas dificuldades”, conta Karoline, que, às vezes, também se permite chorar. Os médicos têm respaldo ético e legal para suspender tratamentos que não tenham mais efeito.

A maior parte das pessoas, mesmo antes da pandemia, já morria em hospitais. Em 2019, do 1,39 milhão de mortos no país, 991 mil deram o suspiro final em unidades de saúde. O Relatório de Outono do Observatório Português dos Cuidados Paliativos de 2018 revelou que, daqueles que gostariam de morrer no lar, apenas metade conseguiu.

O Colégio Notarial calcula que, desde 2014, 19 DAVs foram declaradas em cartórios baianos. O número pode estar subnotificado, já que declarações de vontade nem sempre recebem o nome previsto pela resolução do CFM ou são autenticadas. Embora sejam desconhecidas no Brasil, desde 1967, as diretivas são praticadas nos Estados Unidos, onde a médica Cicely Saunders adotou uma ideia de tratamento que contemplasse as vontades do paciente terminal. 

As diretivas não são sinônimo de eutanásia, ato de proporcionar a morte indolor a alguém por meio de medicamentos que é proibido no Brasil e permitido em países como Holanda, Suíça, Bélgica, e em três estados dos EUA.

Direito é intervecionista ao falar da vida e da morte Por trás do desconhecimento, das proibições e do desrespeito das vontades em casos possíveis está o fato de a morte ser uma certeza que tentamos ludibriar com intervencionismo. “Nosso Direito acredita que há coisas que devem ser protegidas – uma dessas é a vida”, explica César Peghini, doutor em Direito Civil. O site testamentovital.com.br apresenta modelos de como elaborar diretivas. 

Numa noite de agosto de 2019, Andrea Mattos, 48, estava internada para tratar o terceiro câncer. Não aguentava mais hospitais. Numa das noites de internação, chamou uma amiga, e disse que precisava escrever uma carta. Como não conseguia organizar as palavras num texto, enquanto ela ditava, a amiga, na cadeira ao lado, escrevia. Anos atrás, tinha sido professora da rede municipal, mas doenças não fazem distinções. 

O quadro clínico de Andrea, com sete lesões no cérebro, é irreversível. Ela sabe disso, e quer morrer em casa, sem tubos no corpo ou quimioterapias conectando-a artificialmente à existência. A médica dela está informada dessa decisão. A vida tem beleza, diz Andréa, “e partir é só uma etapa”. Quando o coração dela parar, a amiga deve apresentar a carta à família dela. “A vida tem beleza e o partir é só uma etapa. A decisão de vida é de cada um e ninguém pode interferir na vida de ninguém”.Na parte de quem fica, a maior dificuldade de acatar a vontade de um paciente, acredita Maira Dantas, médica e conselheira do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb), é a dor pela perda.

‘Se você quiser partir, pode partir’: a morte para quem fica  “Ela disse que não tinha medo da morte, mas do sofrimento”, lembra Soraya Pessino, 46. A única filha de Célia se despiu do egoísmo para acolher as escolhas da mãe, diagnosticada com mielodisplasia, tipo raro de câncer. Nos 20 dias anteriores à morte, Célia tocou piano, pediu um quarto no hospital de onde avistasse as árvores e um relógio pendurado na parede.

Então, quando o fim se anunciou na temperatura fria do corpo da mãe, Soraya cochichou no ouvido dela: “Se você quiser partir agora, pode partir. Te amo”. Célia morreu em seguida.

Como não podia, nem desejava, fazer transplante, nem quimioterapia, Célia escolheu passar os últimos dias de vida em cuidados paliativos, no Hospital Santa Izabel. A medicina paliativa, explica Victor Silva, diretor administrativo da Associação Nacional de Cuidados Paliativos, criado em 1996, é uma maneira de "transicionar os cuidados"."As intervenções não almejam mais a cura e sim um alívio ao sofrimento e uma melhor qualidade de vida", diferencia Victor. As terapias paliativas são apontados, por estudos, como parte da estratégia global para gerir a pandemia, agregando melhora na assistência. Existem 15 equipes de cuidados paliativos no estado, formadas por médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social e fisioterapeuta.

Ainda há “resistência provocada pelo desconhecimento”, opina Franklin Santos, o médico que integra a coordenação do Programa de Cuidados Paliativos do Estado, criado em desde 2019. “Mas, existem avanços. A pandemia trouxe esse efeito de pensar a terminalidade”. Esses cuidados são indicados para pacientes terminais. A família e o paciente participam do processo de escolha. 

Nos cálculos de Franklin Santos, evitar uma internação hospitalar de paciente com quadro clínico irreversível pode poupar o paciente de dor e direcionar os gastos em saúde. O custo de uma diária numa UTI varia de R$ 1,4 mil a R$ 2,1 mil, segundo a Planisa, empresa de soluções de gestão de saúde.

O processo consiste em, também, naturalizar a própria morte, acredita Franklin.  Para isso, Iracema aponta um caminho, que ela ensina antes de se despedir da reportagem: “Ninguém pode rir o tempo todo". E, assim, resume o segredo para encarar os fins.