'Pensei que não fôssemos conseguir voltar', diz argentino repatriado de Salvador

Conflito ideológico entre os presidentes dos dois países foi motivo de preocupação para alguns

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 13 de maio de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

O brilho nos olhos do contador público Walter Amin era notável na entrada do Aeroporto Internacional de Salvador. Há um ano e dois meses, o argentino largou o emprego para realizar o sonho de viver em Porto Seguro. Montou um food truck, que já não estava rendendo bem antes da pandemia do novo coronavírus. A chegada da doença na Bahia foi o pretexto para ele ‘cair na real’ e voltar à terra natal. Foi o fim do sonho – brasileiro - do nosso ‘hermano’. 

“Eu tinha vontade de mudar de vida e sempre pensei em Porto Seguro. Decidi vender lanche, mas tive muita dificuldade com o pessoal da prefeitura. Eles até hoje não me deram as autorizações para ter o food truck e tive que trabalhar como informal. Por isso, não penso em voltar para a Bahia”, disse Amin, que após a pandemia pensa em trocar a Argentina por um país “menos burocrático”, o Canadá.   Walter Amin não pretende voltar para a Bahia depois da pandemia (Foto: Daniel Aloisio/CORREIO) Essa é apenas uma das 96 histórias de argentinos - e brasileiros que moram na Argentina - que estavam no Nordeste e foram repatriados para a terra do tango na terça (12). O voo internacional da empresa Aerolíneas Argentinas saiu de Salvador às 13h20 e chegou em Buenos Aires, capital do país, às 18h10.  

Como as fronteiras do país vizinho estão fechadas desde o dia 27 de março, com direito a uma rigorosa proibição de venda de passagens aéreas comerciais até 1º de setembro, a repatriação só foi possível após uma parceria do consulado argentino no Brasil com o Governo do Estado.  

“A gente atuou também com os municípios para facilitar o transporte das pessoas espalhadas pela Bahia que manifestaram interessem de voltar para a Argentina”, explicou Jorge Ávila, diretor da Secretaria de Turismo. Para embarcar, todos os passageiros passaram por medição de temperatura, entrevista com um médico e emissão de laudo que atestasse a aptidão.  A Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab) também atuou nessa operação (Foto: Marina Silva/CORREIO) As medidas de enfrentamento ao covid-19 na Argentina estão tão rigorosas que alguns argentinos pensaram que não iam conseguir embarcar para a terra natal tão cedo. Esse é o caso do carpinteiro German Keilis, que nasceu em Salvador, mas se mudou para o país vizinho ainda durante a infância, com toda a família.  

Depois de 38 anos sem vir ao Brasil, German veio junto com a esposa e duas filhas no dia 3 de março para passar as férias de um mês na terra natal, o bairro de Amaralina.“Como o governo brasileiro tem uma diferença ideológica do argentino, eu pensei que não fôssemos conseguir viajar. Até saímos do hotel que tínhamos nos hospedados e alugamos uma casa por um mês, pois estava mais em conta”, disse.  O voo de quase 5h é apenas a primeira etapa que a família Keilis vai enfrentar nessa volta para casa. Depois, o grupo vai encarar uma viagem de 12h de carro até a região da Patagônia Argentina. “Vivemos numa cidade de 30 mil habitantes, que teve apenas cinco casos, até agora. Lá ficaremos em isolamento por 15 dias, mas perto da nossa família”, disse. 

Turismo  A maioria dos passageiros repatriados estava em Morro de São Paulo, o distrito turístico preferido dos argentinos na Bahia. Esse é o caso dos irmãos Lucas e Noé Sagania, de 43 e 39 anos, respectivamente. O primeiro mora e trabalha no distrito do município de Cairu há três anos. Já Noé veio visitar o irmão no dia 28 de novembro.  

“Minha volta seria no dia 28 de fevereiro, mas eu tive chikungunya e não pude embarcar. Logo depois veio a pandemia, que me impediu mesmo de viajar”, lamentou Noé. Para conseguirem sobreviver com menos dinheiro, a dupla viveu gratuitamente por 15 dias numa pousada da região. O dono, brasileiro, não cobrou nada.   Os irmãos Sagania disseram que vão sentir saudades de Morro de São Paulo (Foto: Marina Silva/CORREIO) A Argentina é o país que mais manda turistas para Morro de São Paulo e muitas dessas pessoas se apaixonam tanto pelo lugar que decidem morar ou se empregar no turismo idílico da ilha, como é o caso de Lucas Sagania. “Eu, quando vim morar em Morro de São Paulo, foi para realizar um trabalho, mas sabia que iria ficar. Estou saindo só por causa da pandemia, mas assim que tudo passar, volto para meu lugar”, disse.  

Segundo a Secretaria de Turismo da Bahia (Setur), os argentinos representam mais de 25% do total de turistas internacionais que chegam à Bahia. No entanto, segundo o cônsul argentino no Brasil, Pablo Exequiel Virasoro, os argentinos estão espalhados pelo Brasil e já aconteceram voos de repatriação em outras cidades. “O que estamos fazendo em Salvador é algo que abrange a região Nordeste, pois argentinos que estavam em outros estados também estão nesse voo”, disse.  

Esse é o caso da funcionária das Forças Armadas da Argentina, Lara Tagle, 29 anos, que foi visitar uma amiga em Maragogi, litoral de Alagoas. Ela chegou no Brasil no dia 12 de março, um dia após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar que o mundo vive uma pandemia do novo coronavírus. “Eu estava na escala em São Paulo quando houve essa declaração. Não tinha mais como voltar”, disse.  

Seu voo de volta foi cancelado e ela teve que ficar por mais tempo em Alagoas. “Por eu ser funcionária pública, continuei recebendo salário, o que permitiu que eu me sustentasse aqui no Brasil. Mesmo assim, queria muito voltar para meu país, pois percebo que temos lidado melhor com a pandemia”, disse.   Lara Tagle trabalha nas Forças Armadas da Argentina (Foto: Marina Silva/CORREIO) Até a noite de terça (12), o país de 44 milhões de habitantes teve 6,5 mil casos confirmados da doença e apenas 319 mortes. No mesmo período, só o estado da Bahia, que possui 15 milhões de habitantes, tinha 6,2 mil casos confirmados e 225 óbitos. Já no Brasil, o número de casos é de quase 180 mil e de mortes é superior a 12 mil.  

“O isolamento no meu país está prorrogado até o dia 24 de maio. Lá o presidente demonstra estar mais preocupado em não termos tantas mortes do que termos problemas econômicos”, completou Lara.  

Preço salgado  Segundo o cônsul da Argentina, o valor cobrado pela empresa que está prestando o serviço é mais em conta do que os preços normais. No entanto, todos os entrevistados relataram que tiveram que arcar altos valores, incluindo os brasileiros que moram no país e queriam voltar para casa.  

Esse é o caso do casal Kamylla Lima, 31 anos, e Allan Torres, 30 anos. A dupla vive em Buenos Aires, onde Kamylla estuda medicina e Allan trabalha na cidade. Graças a internet, a moça conseguiu acompanhar as aulas do curso que acontecem a distância nesse período. Já o rapaz não perdeu seu emprego, pois o país latino proibiu demissões ou suspensões de contratos por três meses.   O casal brasileiro levou o cachorrinho para a Argentina (Foto: Marina Silva/CORREIO) “Essa foi a minha sorte. Estou explicando ao pessoal a situação delicada que me encontro e espero que isso não afete meu emprego”, disse Allan. A dupla pagou R$ 3,5 mil nas passagens de ida e volta, essa última que foi cancelada. Já somente a passagem de volta dos dois custou R$ 5,7 mil. “A gente nem conseguiu receber o valor da passagem cancelada”, disse Kamylla.   

Outro brasileiro que pagou um preço salgado foi Marcelo de Jesus, 46 anos, natural de Valença, interior da Bahia. Dono de restaurante em Buenos Aires, o chef de cozinha teve que pagar 40 mil pesos argentinos, o que equivale a R$ 3,5 mil. “Eu tinha vindo para a Bahia só para visitar a minha mãe e precisava voltar. Tenho o meu restaurante e a minha família que me espera por lá”, disse. 

Marcelo conheceu uma argentina na Bahia há mais de 20 anos. Casaram e viveram no Brasil durantes seis anos. "Mas minha esposa teve que voltar para a Argentina e eu a acompanhei. Lá resolvi montar um restaurante que serve até comida baiana”, disse.   Marcelo de Jesus descansa no aeroporto enquanto espera o embarque (Foto: Marina Silva/CORREIO) *Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro