Pequeno roteiro para um filme sem final

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  • Kátia Borges

Publicado em 29 de junho de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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“This is the end / Beautiful friend / This is the end”

(Doors)      Nosso amigo descansou finalmente. Foi assim que ela disse. E o fez com calma, pausadamente, como se aquela frase, dita assim, fosse um improvisado código. Fiquei em silêncio, decifrando, até que ela repetiu duas ou três vezes o meu nome. Então falei algo que não lembro, talvez tenha perguntado sobre o velório. Eu queria desligar rápido, me distanciar rápido da voz da ex-mulher do meu amigo que descansou finalmente. Ela o sabia bem cansado mesmo. Estivera ao lado dele todo o tempo. Quanto a mim, sabia apenas o diagnóstico. 

Quando ele contou, estávamos no lançamento de um livro no centro. Havia me ligado horas antes, pedindo dramaticamente que não faltasse. Mas confesso que nunca o levava muito a sério. Talvez estivesse apenas apaixonado e prestes a sumir. Como daquela vez em que demorei um bocado para ter notícias, telefonando feito louca para seus números de trabalho. Quando o vi finalmente, ainda na fila de autógrafos, acenamos quase ao mesmo tempo um para o outro, sorrindo loucamente.

Enquanto ele se aproximava, pensei que parecia forte, mas de um jeito magro. Como se toda a energia de seu corpo estivesse concentrada nos olhos. Eram os olhos que o carregavam.  Nos abraçamos e fomos abrindo caminho entre as pessoas até um banco de madeira, no pátio da livraria. Uma grande árvore observava. Perguntei se conhecia aquela espécie. Meu amigo olhou para o alto, como se estudasse botânica, e não letras, duas ou três folhas amarelas caíram em seu rosto.

O autor do livro, um dos gigantes, fazia parte da nossa trupe dos anos oitenta. Estávamos cercados deles, aos montes, naquele lugar. Todo mundo se conhecia há séculos, das noites, do rock, do sexo casual feito às vezes só para matar o tédio.  É preciso levantar bem alto a cumeeira, ele comentou, citando Salinger, enquanto em torno de nós um grupo animado ia se formando. 

As conversas fluíam fácil e nunca faziam grande sentido, vivíamos metidos em intermináveis digressões sobre poesia, Sartre, Deleuze ou algum filme de Allen ou Wenders. Só quando a roda de amigos se dissipou por completo, já no adiantado da noite, ele me chamou para tomar a saideira, um uísque, num bar ali perto. Agora descansou, anuncia a voz ao telefone. Mas esse tal descanso, eu o sabia, era apenas uma metáfora sem graça.  A lembrança persistia, incômodo caroço na pele lisa dos dias. 

Nossas fotos de juventude, anotações dispersas, o que restara do projeto inacabado de um filme. Entre planos internos e externos, sequências inteiras sem diálogos, singularidades que povoam o mundo dos insetos, flores esquisitas que enchem os vales, e árvores que sombreiam generosamente até ignorantes como nós, que desconhecem os seus nomes. Em meio a poetas e atores, moviam-se incansáveis os nossos personagens. 

– Contou que lhe fiz uma visita? – perguntei para a ex-mulher de meu amigo.  – Sim, e ele quis saber de tudo – ela respondeu, olhos baixos.  – Como se duvidasse?  – Talvez duvidasse.