Perdidos no tempo: como a pandemia fez as pessoas perderem a noção dos dias e até sonharem mais

Especialistas do sono, porém, alertam para os riscos biológicos da falta de rotina

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  • Thais Borges

Publicado em 10 de maio de 2020 às 13:00

- Atualizado há um ano

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Desde o começo da quarentena, a estudante Victória Gonzalez, 18 anos, tem vivido dias sem planejamento. Estuda, lê alguns livros e até tenta treinar uma ou outra receita nova que descobriu na internet. Mesmo assim, não consegue se organizar. Definir horários virou uma tarefa difícil. Às vezes, até lembrar o dia da semana requer um esforço extra. 

“Tem dias que tenho alguma aula online e eu simplesmente esqueço que tem aula no dia seguinte. Esqueço de acordar e é uma confusão no horário e no dia”, admite a jovem, que, do Brasil, tem acompanhado as aulas da Universidade do Porto, em Portugal, onde estuda, pela internet. 

Morando há dez meses em Portugal, ela já lutava com o sono. Com dificuldades para se adaptar ao fuso do país, acaba indo dormir às 2h, 3h da manhã com frequência. “Mas, pelo menos, eu tinha o hábito de acordar cedo. Com essa quarentena, o sono desregulou totalmente. Estou indo dormir quando o sol nasce”, conta. 

O relato de Victória, na verdade, tem se repetido. Nos consultórios de especialistas do sono, cada vez mais pacientes narram experiências semelhantes durante a pandemia: estão perdidos no tempo. Muitos não diferenciam mais os dias da semana, ao mesmo tempo em que falam de fenômenos do sono como insônia ou que têm dormido mais. Outros dizem que têm tido sonhos cada vez mais vívidos nessa quarentena. 

Mesmo assim, autoridades de diferentes áreas alertam: a falta de rotina pode, sim, ser muito prejudicial. E ela pode afetar justamente aquele que pode ser um grande aliado contra o coronavírus. “O maior provedor de imunidade para o nosso organismo é o sono. Se você dorme mal, sua capacidade de gerar anticorpos e imunidade cai muito”, afirma o pneumologista Francisco Hora, coordenador do Laboratório do Sono do Hospital Português, doutor em Medicina e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Sonhos  No caso da estudante Victória, lembrar dos sonhos têm acontecido com frequência. Ela própria chega a arriscar as razões para isso. “Acho que, por causa da correria da vida cotidiana, a gente acaba não refletindo sobre o que a gente sonha. Automaticamente, a gente esquece. Agora, eu tenho mais tempo para fazer um ritual para levantar. Acordo, fico deitada um pouco pensando e consigo refletir”, diz a estudante. 

De fato, esse crescimento do número de sonhos tem a ver com a lembrança. Todas as pessoas sonham em todas as noites, mas nem sempre se recordam que isso aconteceu, como destaca a especialista em odontologia do sono Kenya Felicíssimo, doutora em Biotecnologia. "A pandemia trouxe lados muito negativos, mas um lado positivo é que talvez você possa agora dormir as horas de sono realmente necessárias para você. Aquele tempo que seria gasto no deslocamento pode ser consumido com o sono agora", analisa Kenya Felicíssimo. Por outro lado, quem dá início ao home office sem nem mesmo tirar o pijama já bagunça a rotina. Uma dica comum, entre os especialistas é de que as pessoas devem manter os horários de acordar e de dormir. 

"Se precisa começar o home office às 8h, de preferência tome um banho, acorde mais cedo, troque de roupa e quebre essa rotina do pijama. Depois, tenha um horário para iniciar suas atividades", diz. 

Além disso, é preciso pensar no local onde o trabalho tem sido feito. Como o trabalho remoto na quarentena aconteceu de forma não planejada para muita gente, é comum que as pessoas não tenham um espaço, em casa, para trabalhar. Algumas acabam escolhendo o quarto, o que é desaconselhado. 

"Você acorda e o computador já está ali. Dê preferência a remover o seu instrumento de trabalho de dentro do quarto e fique na sala, por exemplo, mas sem televisão", orienta a especialista em odontologia do sono. 

É possível usar os sonhos também para compreender melhor a situação atual, como explica a psicóloga Maria Eugênia Glustak, da Clínica Holiste. De acordo com ela, uma vez que o contexto pode ser amedrontador e simbólico, é possível afetar o inconsciente. "As pessoas vão ser afetadas por isso e lembrar de sonhos simbólicos. É importante anotar esse sonho, fazer um caderno", sugere. Em um processo de terapia, por exemplo, os sonhos podem revelar muito sobre o funcionamento do inconsciente, bem como fazer aflorar ou mapear momentos da vida de cada um. "É um mergulho mesmo para o interior". 

Relógio biológico Mas há quem, como o pesquisador Alexandro Mota, 29, tenha usado a flexibilidade de horários na quarentena para produzir na madrugada. Em algumas das semanas, ele encara uma jornada que começa entre 22h e 23h e segue até 4h ou 5h da manhã do dia seguinte. “Já era algo que eu fazia às vezes. A diferença é que, de dia, está sendo muito difícil produzir, pela ansiedade, porque as pessoas estão mais frenéticas e falam mais, você tem interações maiores no Whatsapp e não tem um descanso no coração”, conta. Assim, o horário da madrugada foi quando encontrou tranquilidade. “Gosto de fazer isso, mas eu não conseguia antes porque tinha uma vida social a cumprir”, completa. 

Essa chamada "vida social", de fato, exerce um poder sobre o corpo das pessoas. Segundo o pneumologista Francisco Hora, coordenador do Laboratório do Sono do Hospital Português, o organismo humano tem uma cronobiologia. É uma química que obedece tanto a regras internas, independentes da vontade de cada um, quanto ao controle externo -  que são os horários da rotina."Nessa quarentena, um paciente me disse que vive um fim de semana que não acaba nunca e não tem perspectiva de acabar. Isso torna a gente mais indisciplinado", diz Francisco Hora. Se uma pessoa que costumava dormir sempre às 22h, agora, passa a dormir à meia-noite, depois à 1h da manhã e, no dia seguinte, novamente às 22h, é como se ela ficasse "desfusada". A expressão vem justamente da sensação de perda de fuso horário, comum em viagens - especialmente nas que avançam os fusos. 

Só que essa mudança de horários tem repercussões orgânicas que passam por questões cognitivas e até de humor. O isolamento, de acordo com o pneumologista, já traz uma certa melancolia. Nos pacientes que já têm tendência à depressão, um dos primeiros indícios é a perda de sono - ou da percepção de que se teve um sono reparador. "Muitos pacientes têm perguntado se tem problema tomar uma tacinha de vinho todo dia para relaxar. Eu digo que tem, porque acaba criando uma dependência. A bebida alcóolica, no primeiro instante, numa dose civilizada, pode ser boa para o sono. Mas a tendência, a longo prazo é tirar o sono". Ele também recomenda que as pessoas evitem usar remédios para dormir, se não há prescrição para isso. "O desmame desses remédios não é fácil. Estamos todos vivendo a angústia de uma situação nova, preocupação com os amigos e entes queridos, mas não devemos entrar numa espiral de depressão e negativismo", alerta o pneumologista. 

Uma forma de não chegar nesse estágio seria a chamada higiene do sono. Na hora de dormir, a orientação é relaxar - e isso pode ser feito desde com uma música agradável até uma live ou vendo uma comédia. "Não faltam alternativas para não ficar só absorvendo notícia ruim", completa.