Pivô de crise nos EUA, vape é 'aliado' de baianos que querem deixar de fumar

Estados Unidos confirmam 39 mortes e 2 mil internações associadas ao cigarro eletrônico

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  • Vitor Villar

Publicado em 10 de novembro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr/CORREIO

Uma cena tornou-se comum nos últimos meses: João está no estacionamento do trabalho, usando o seu cigarro eletrônico (ou vaporizador, ou vape). José, que nunca fumou, se preocupa: “Você tem que parar de usar esse negócio. Vi na TV que está matando gente nos Estados Unidos”. 

José refere-se às 39 pessoas que morreram nos EUA com uma doença rara nos pulmões - mais de 2 mil seguem internadas desde março. Segundo o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgão estadunidense, todos usaram uma marca específica de vape. Os casos foram amplamente noticiados e estão associados ao uso dos vaporizadores. 

João rebate: “Mas, o aparelho é outro, e o uso foi todo errado. Botaram um juice (líquido para vaporizar) de maconha e óleo de Vitamina E, maluquice. O meu só tem nicotina. E outra: não fale mal do meu vape. Foi por causa dele que parei de fumar”. 

Neste ponto, o CDC dá razão a João. A maioria dos pacientes usou líquidos com tetrahidrocanabidiol (THC), substância da maconha, dissolvido numa espécie de óleo que impregnou os pulmões. O órgão acredita que o produto, clandestino, teve papel decisivo no surto.

Voltando aos amigos, algo fica claro: existe um novo tipo de cigarro na cidade, e você já deve ter encontrado alguém soltando uma cortina de vapor por aí. O número de usuários e de defensores deste hábito não para de crescer - inclusive em Salvador, onde usuários se reúnem e trocam informação sobre o hábito.  Queremos saber o porquê. E é por isso que o CORREIO abordará o assunto do ponto do usuário – que, além do cigarro, busca se livrar do estigma de fumante.  

Além de relatos pessoais, a reportagem  traz dados e opiniões de médicos: de um lado, especialistas contrários ao equipamento e à regulamentação por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) - que reabriu as discussões sobre os vapers, que têm venda proibida no país desde 2009. Do outro, os que são a favor do vape como possível redutor de danos para fumantes.  

Ponto de partida Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), o tabaco fumado mata mais de 156 mil pessoas por ano no Brasil - 428 a cada dia. É responsável por 90% dos cânceres de pulmão e outros tipos de câncer, além de ser fator de risco para acidentes vasculares cerebrais e ataques cardíacos. Esses dados não estão aqui por acaso: é por medo de entrar para as estatísticas que muitos fumantes se arriscam com o vape. Assim, surge uma espécie de ‘regra número um’ da comunidade vaper: por ser um aparelho criado para ajudar pessoas a largarem o cigarro tradicional, o uso deveria ser exclusivo de fumantes. “O que vicia no cigarro é a nicotina, a mania de aspirar e expirar fumaça e associar isso a certas ocasiões do dia. O cigarro eletrônico me dá tudo isso com 95% de redução de danos”, acredita  Luiz Calábria, 57 anos, fumante desde os 16 e vaper há quatro. “Mas, isso é para o fumante. Quem não fuma tem que continuar assim”, pontua. A comunidade troca informações por grupos de WhatsApp, vídeos no YouTube e sites especializados. Em comum, a política expressa de dissuadir os não-fumantes que querem iniciar no vape e de constranger vapers que indiquem o aparelho para quem nunca colocou um cigarro comum na boca.  

“Quem trata o vape com seriedade jamais indica para um não-fumante. Essa não é a finalidade. O que defendemos é que seja usado para quem quer deixar de fumar”, reforça Élson Souza, 56, usuário do vaporizador há três anos. 

Élson é o típico vaper que tentou todos os métodos tradicionais antes de chegar ao cigarro eletrônico – e sofreu consequências. Ele fumou por 37 anos. “Tentei chiclete e adesivo de nicotina. A última vez foi com remédio (vareniclina). A ansiedade me levou a descontar na comida. Em menos de um mês, eu ganhei oito quilos. Pensei: ‘Que ótimo, vou ter ataque cardíaco por conta da obesidade em vez do cigarro’”. 

Relato parecido com o de Isolda Lisboa, 56, fumante desde os 14, vaper há quatro. Ela foi além: “Até hipnose, eu fiz. Era o desespero, fazer o quê? Você se dispõe a tudo por sua família. Usei Champix (nome comercial da vareniclina), adesivo de nicotina, acupuntura e terapia psicológica”, elenca. “Tive todos os efeitos colaterais do Champix. Enjoo, dor de cabeça, vômitos. Aguentei na força de vontade e tomei até o último comprimido. Consegui reduzir para quatro cigarros por dia, mas voltei”, afirma. Ela fumava, em média, um maço por dia. Fumante ou não? Pelos relatos, vapers não se consideram mais fumantes. Eis a primeira controvérsia para a medicina: ao mudar para o vaporizador, a pessoa segue sendo fumante?

Não há consenso. Embora no Brasil seja missão das mais difíceis achar um médico favorável ao vape, na Europa, o cigarro eletrônico é disseminado há 10 anos, bem como estudos sobre o aparelho. A União Europeia já regulamentou detalhes sobre a venda e o uso em seu território. 

O cardiologista grego Konstantinos Farsalinos é uma referência sobre vapes, dedicando-se ao tema desde 2011. Atualmente, mantém um site com estudos para orientar usuários e participa de congressos internacionais – apresentando o aparelho como opção eficaz para que fumantes larguem o cigarro convencional. 

“‘Fumar’ significa queimar algo e inalar a fumaça dessa queima. Como cigarros eletrônicos não queimam nada, não há como ‘fumar’ algo. Na literatura científica, falamos de ‘uso’ do cigarro eletrônico ou ‘vaping’. Ao vaporizar, a pessoa larga o hábito de ‘fumar’, mas continua inalando nicotina”. Para ele, vapers não são fumantes. 

O pneumologista Alberto José de Araújo é presidente da Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira (AMB), referência no combate ao cigarro tradicional. Atualmente, dedica-se também a combater o cigarro eletrônico, que ele considera tão prejudicial quanto o de tabaco. 

“Quem usa esses produtos eletrônicos também é tabagista. Não tem essa história de ‘vaper’. Você continua sendo dependente de nicotina, substância oriunda do tabaco. E você associa a um ritual: pega na mão, leva à boca, simula fumaça. Do ponto de vista comportamental, é a mesma dependência”, afirma ele, que defende que vapers são, sim, fumantes. 

A mudança Fumantes ou não, vapers garantem ter largado – ou trocado – o vício de vez. Philippe Pinon, 31, fumou escondido da família por oito anos. Há cinco, vaporiza. 

Ele ganhou o primeiro vape da namorada, já de saco cheio do cheiro e do gosto do cigarro. De cara, Philippe não se adaptou. “Depois de um tempo, surgiu uma viagem de dez dias com minha família. Passei os dez dias só com o vaporizador, numa boa, e pronto: troquei de vez”.

Luiz adaptou-se mais rapidamente. Um amigo do trabalho lhe emprestou um vape e pediu que experimentasse, nem que fosse intercalando: “Ele me disse que eu ia acabar esquecendo o maço no bolso. De fato, naquela semana eu não toquei no cigarro”. 

Precavido, Luiz fez o mesmo que vários vapers: “Li muito na internet, sobretudo estudos realizados na Europa, e aí me senti seguro”, explica. O Inca, em publicação de 2016, não recomenda o uso em razão da "falta de evidências científicas sobre a segurança desses dispositivos".  (Foto: Betto Jr/CORREIO) Por que o vape?  Os usuários ficam emotivos quando listam ‘os benefícios’ sentidos. É quando mais se empolgam e defendem o uso do aparelho. “Tinha uma escada no escritório do meu advogado que eu sofria para subir. Parava a cada lance e chegava em cima botando o pulmão para fora, sentindo o peito queimar. Meses depois do vape, subi a mesma escada numa boa. Foi uma verdadeira luz. Eu convivia com uma perda pulmonar e não sabia”, relata.Para Isolda, foi o retorno de um dos sentidos. “Voltei a sentir o meu cheiro natural depois de anos. Você sabe o que é isso? É uma sensação muito boa, gostosa. Foi algo que sempre me incomodou no cigarro: quem fuma não sente o seu cheiro. Você só exala cigarro, ao ponto de se acostumar como se fosse o seu”, diz. 

“O ganho no olfato é mesmo assombroso”, concorda Élson. “Numa noite dessas no quintal da minha casa, eu senti um cheiro que eu nunca mais tinha sentido, um cheiro que eu sempre gostei e que me fazia falta: cheiro de mato”. 

“Você vê em pouco tempo a diferença, é algo gritante. Durmo melhor e respiro melhor, tanto que voltei a praticar esporte depois de anos”, diz Luiz.

“A qualidade de vida da minha família melhorou muito”, concorda Isolda. “O cheiro da casa melhorou 100%. Por mais que eu evitasse, tudo cheirava a cigarro. Agora acabou, minha casa tem um cheiro bom”, afirma.

“Trabalho com atendimento, então faz toda a diferença. Às vezes fumava e tinha que ficar lavando a mão, chupando bala. Era uma coisa ridícula”, acrescenta Philippe. 

Voltar a fumar? “Quando você se livra de um vício, você fica o tempo todo querendo se testar. Então eu me testei”, conta Isolda. “Eu tinha uma carteira de cigarro em casa. Falei para minha filha ‘vou fumar um cigarro’. Quase vomitei. Joguei o maço fora, na hora. Minha filha deu pulos de alegria. Foi libertador”, completa. 

Luiz também se testou: “Vontade de voltar a fumar, nunca tive, mas um dia comprei um cigarro para me testar”, diz. “Dei a primeira tragada e tossi na hora. Veio uma dor forte na garganta, uma queimação insuportável. É uma coisa repugnante”. 

Esse ‘teste’ é comum entre os que trocaram o cigarro convencional pelo eletrônico. Até aqui, todos garantem que foram bem-sucedidos. Mas, médicos são críticos. “A única alternativa é parar de fumar. É uma dependência muito forte e trocar por outro tipo de cigarro vai manter a pessoa dependente. Não há garantia de que a troca vai acabar com os problemas da pessoa, não tem como dizer que as chances de ter câncer serão reduzidas. Depende do tempo que ela passou fumando e da agressão que já teve”, diz o pneumologista Alberto José de Araújo. 

“O ideal é abandonar o vício em nicotina sem usar nada. A segunda opção é largar usando os remédios. Mas, 95% dos que tentam parar sem usar nada falham. E 80% dos que tentam parar com remédios falham. O que você vai fazer com eles? Vai deixá-los fumando porque você não é a favor do vape? Não me parece muito razoável para um médico”, diz o grego Farsalinos. 

É com esse discurso que Luiz concorda. Para ele, é preciso entender o drama dos pacientes e observar o vape como opção viável. “Em suma, o que gostaríamos é que se dissesse: ‘Olha, meu filho, o bom mesmo para o pulmão é ar. Mas se você é fumante e até hoje não largou, esse aparelho pode ajudar’”. 

Não pode ser vendido no Brasil 

A Anvisa proíbe a venda, importação e propaganda dos cigarros eletrônicos desde 2009. O mesmo vale para todas as peças e líquidos. Não há lei sobre o uso dos aparelhos. A agência, porém, reabriu  o debate com usuários e especialistas para atualizar o que se conhece sobre os vapes e discutir a regulamentação. A Anvisa já promoveu em 2019 duas audiências públicas - uma em Brasília e outra no Rio de Janeiro -  e a agenda prevê outros eventos. 

O que já se sabe? 

A combustão no cigarro tradicional libera ao menos 8,7 mil substâncias. Destas, 50 têm potencial cancerígeno – destaque para o monóxido de carbono. No cigarro eletrônico, por não ter combustão, não existem essas substâncias ou elas aparecem em baixa concentração. Isso não significa que o vape seja inofensivo. Suas substâncias são tóxicas e podem gerar efeitos ainda pouco conhecidos no corpo humano 

Efeitos no corpo 

Toxicóloga da USP, Sandra Farsky explica que  o propilenoglicol (PG) e o glicerol (VG), matérias-primas dos juices [líquido usado para vaporizar], são álcoois aprovados para consumo pela via oral – pela via respiratória, seus efeitos são desconhecidos. Alguns estudos mostraram que essas substâncias podem inflamar os pulmões e gerar compostos de potencial cancerígeno. Segundo ela, são necessários mais estudos para conhecer o riscos destas substâncias. 

Surto nos EUA 

Segundo o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), 39 pessoas morreram e mais de 2 mil foram internadas nos EUA com uma pneumonia rara após usarem cigarros eletrônicos. De acordo com o órgão, 90% delas relataram uso de líquidos com tetrahidrocanabidiol, o THC – princípio ativo da maconha – e não os comuns, de nicotina. Segundo o CDC, esses líquidos de THC, obtidos clandestinamente, foram determinantes no surto de pneumonia registrado nos Estados Unidos.

Uso entre jovens

Os Estados Unidos têm registrado um aumento significativo de jovens usando vapes. Segundo a última Pesquisa Nacional de Tabagismo entre Jovens (NYTS), o aumento foi de 78% em um ano – de 11,7% dos estudantes de ensino médio em 2017 para 20,8% em 2018. Parte do crescimento deve-se à criação de um modelo em formato mais discreto chamado Juul. Na contramão, o Reino Unido, na Europa, tem registrado um número estável: 6% dos estudantes de ensino médio usam vapes.

Onde se compra e qual o valor? 

Os aparelhos não são fabricados no Brasil. Por isso, os usuários brasileiros só os obtêm por importação – seja por conta própria ou através de outras pessoas. Nos Estados Unidos, o modelo mais básico de vape (do tipo pen) é vendido por algo em torno de US$ 18 (R$ 72).

*O repórter é vaper desde 2015