Por aromas mais brasileiros nos nossos vinhos

Sai o mirtilo, entra o açaí in natura, como sugerem sommelières e pesquisadoras paraenses ao lançar a Roda de Aromas Amazônica do Vinho

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  • Paula Theotonio

Publicado em 4 de outubro de 2020 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: foto/acervo pessoal

As sommelières e pesquisadoras paraenses Tatiany Falcão e Nígima Amorim Melo lançaram, este mês de setembro, uma Roda de Aromas Amazônica do Vinho. Incluindo frutas como açaí, cupuaçu, bacuri e tucumã, o instrumento é resultado de um trabalho com embasamento científico e passará a compor as aulas do curso de Gastronomia da Universidade da Amazônia (Unama). 

“Beleza, Paula. Mas qual a importância disso, principalmente pra gente aqui do Nordeste?”, você deve estar me perguntando. 

Alcaçuz, mirtilo, cassis, groselha (não o xarope)... Você tem contato constante com esses aromas? Consegue diferenciar, com facilidade, entre notas de amoras e framboesas em um vinho? Todos estes são “odores” pouco conhecidos por nordestinos e que são encontrados em diversos descritivos sensoriais de tintos. 

Essa desconexão entre nossa cultura alimentar tropical e alguns dos itens relacionados na tradicional Roda de Aromas dos Vinhos, criada em 1984 pela americana Ann C. Noble, pode ser um entrave para os bebedores dos trópicos. Afinal, como realmente apreciar algo que você não entende?

Uma pergunta que inquietava Tatiany Falcão e Nígima Amorim Melo, habitantes de Belém do Pará – cidade com vegetação e alimentos únicos. “Ao longo dos anos de profissão, fomos percebendo o quanto alguns desses esses aromas não se relacionavam com o repertório sensorial do Norte brasileiro. Em degustações, sempre falávamos que sentíamos os frutos amazônicos na taça e os demais concordavam, mas era algo que não poderíamos validar por não ser oficial”, conta Nígima. 

Elas relatam que passaram a conversar informalmente com diversos especialistas, entre eles cientistas de alimentos e agrônomos, que confirmaram a possibilidade de encontrar, em outros frutos tropicais, as mesmas substâncias voláteis que remetem aos itens tradicionais da roda. 

E o que são essas substâncias? Que fique claro: nenhuma essência artificial é adicionada ao vinho. De maneira bem resumida, esses compostos (álcoois, aldeídos, cetonas, ácidos graxos, ésteres e terpenos) estão presentes nas uvas e são gerados ao passo em que o vinho é preparado. 

Enquanto os aromas primários vêm da variedade, os secundários aparecem nas fermentações e os terciários surgem com o envelhecimento da bebida. São inúmeros componentes aromáticos diferentes e que o grandioso trabalho de Ann C. Noble resume em famílias como “especiarias”, “floral” e “frutado”. 

Com esse aval, a dupla passou a ler estudos científicos, buscando informações sobre os compostos voláteis dos frutos regionais amazônicos. “Comparamos com constituintes químicos aromáticos já cientificamente comprovados de alguns itens da Roda e nossas sensações se confirmaram. Não era mais apenas uma questão de repertório sensorial pessoal”, relata Nígima. 

Sai o mirtilo, entra o açaí in natura, por exemplo, que esta presente  em diversas famílias de aromas. “Ele possui o beta-damascenona, encontrado em frutas negras (como o famoso mirtilo) e rosas. Também carrega o óxido de linalol, composto terpênico que pode ser relacionado a aromas terrosos, amadeirados e vegetais. Também confirmamos aromas de grama e mel. Ou seja: com um só referencial, podemos descrever muitos tipos de vinho com maior identificação”, revela Tatiany.

Em vez de apontar abacaxi ou banana, o enófilo da região Norte pode dizer que sentiu cupuaçu na taça. E no lugar de indicar flores e vegetais que não encontra com facilidade em seu entorno, pode dizer que o vinho exala jambo vermelho. 

O bacuri, fruto de polpa branca facilmente encontrado no Norte e nos estados do Piauí e Maranhão, remete a frutos tropicais. O muruci/murici, por sua vez, tem um “perfume” que lembra queijo; e o tucumã, de polpa amarelo-alaranjado e textura fibrosa, tem cheiro oleaginoso. 

As sommelières acreditam que essa versão regionalizada da roda permitirá uma maior naturalização da bebida no dia-a-dia do nortista. “Queremos também quebrar mais uma barreira, que é a da harmonização regional. Por que não tomar uma taça de vinho com maniçoba ou um pato no tucupi?”, questiona Nígima.  E se a roda de aromas abrisse espaço para os perfumes nordestinos?

Conversei com alguns sommelières  baianos, que compartilharam suas percepções sensoriais, pessoais e nada científicas para esta coluna. 

Patrícia Penha:  Certos vinhos de Sauvignon Blanc, com seus aromas herbáceos e cítricos, têm nuances de umbu e maracujá do mato, cajarana e carambola. Dica: Lua Sauvignon Blanc, R$ 140, na Adega Terroir

 Alguns tintos com estágio em carvalho novo, sobretudo o francês, trazem algo de especiaria doce, como cravo e canela

 Um Pinot Noir  de clima quente pode remeter a compota de goiaba. Moscatel de Alexandria licoroso  pode exalar melaço  de cana. Dica: Familia Cecchin Moscatel de Alexandria 2016, R$ 28 a taça no Restaurante Manga

Alexandre Takei: Vinhos fortificados,  principalmente os mais envelhecidos, possuem aromas que remetem a jenipapo, tamarindo e licor de passas. Dica: Alambre Moscatel de Setúbal, R$ 170 na Decanter Salvador 

Tintos leves  de baixa intervenção trazem um pouco de pitanga e acerola. Alguns vinhos  laranjas podem carregar notas de siriguela e cajá

Ednaldo Ferreira: Vinhos laranjas podem trazer aromas de carambola. Dica: Villagio Conti 2019, R$ 62 no site da Villagio Conti