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Da Redação
Publicado em 17 de junho de 2018 às 05:00
- Atualizado há um ano
[Acabo de lembrar. Foi na igreja de São Pedro, na praça da Piedade na zona central desta Salvadores. 1984]. [Amo visitar templos católicos, embora eu seja, digamos, anticlerical até a medula. Provável motivo – cinéfilo fiel que fui e sou do espanhol Luis Buñuel, herege gênio da raça].
Aos fatos: sentado na última fila dos bancos de madeira, contrito em reflexões e viagens psicodélicas, deveras maconhado, meus ouvidos perscrutadores ouvem voz de garoto que quase grita: - Quero muito que minha irmãzinha de dois anos morra! Tenho muito ódio de minha irmãzinha de dois anos!
Olho para trás e avisto garoto que teria algo em torno de 10 anos e compleição física robusta. Está de pé. Não se digna a ficar de joelhos diante do confessionário. Não consigo enxergar a carantonha do padre, devidamente protegida pelo quadrangular gradil de madeira que o esconde.
Mas ouço tudo o que padre que não vejo diz, e percebo, nauseado, que expele jatos de cuspe quando fala, e ele fala com certa ênfase: - Não precisa gritar. Fale baixo. Só quem precisa saber de seus pequenos pecados somos eu e Deus, e Ele escuta tudo o que dizemos, falemos alto ou baixo.
O garoto ignora o que o padre diz, mas lhe responde com prontidão, sempre em voz alta, quando é indagado sobre o ‘nome que lhe deram na pia batismal’. Na nave, ampla e vazia, voz ecoa, firme: - Sou João Batista. Mas isso não importa, velhote do bafo de cebola!
O padre finge não ouvir o desaforo e insiste: - Quero lhe fazer duas perguntas. Primeira: por que rapazinho de nome tão bonito feito João Batista fala tão alto...?
O garoto que diz se chamar João Batista não deixa o padre prosseguir, e responde cheio de convicção: - Falo alto porque todos os padres que conheço são surdos. E Deus também!
O padre ignora o que ouve, e agora vai direto ao ponto: - A minha segunda pergunta é por que garoto que tem nome de santo pode odiar dessa forma que você diz odiar a irmãzinha inocente de dois anos?
João Batista abre a guarda pela primeira vez, chora, e as lágrimas lhe escorrem caudalosas pelas bochechas rosadas. Berra: - Por que depois que ela nasceu, minha mãe e meu pai só têm olhos carinhos para ela! Tenho ódio dela, muito ódio!
O padre sugere: - Releve, minha criança linda. Com o passar do tempo, quando a irmãzinha deixar de ser novidade tudo voltará a ser como dantes, minha criança linda!
O menino se enfeza ainda mais, chora ainda mais, e entre soluços e lágrimas, esbraveja: - Criança linda, um piroca, bafo de cebola!
Num átimo, João Batista escafede-se, atravessa esbaforido a porta central da igreja de São Pedro e corre veloz, sem olhar para trás, pelo Jardim da Piedade.
[Mais de trinta anos depois, em meteórica passagem por Salvadores, esta cena me vem à mente quando flano pelo Porto da Barra e olho-pro-céu-meu-amor e vejo como ele está lindo – e duas perguntas sem respostas me vêm à cabeça: 1. No que será que a vida de João Batista se transformou, se é que ele chegou à vida adulta? 2. Por que achava, de maneira tão precoce que todos os padres + Deus eram surdos?]