Por que 'Festa' é a mais importante música baiana feita na história do Carnaval

Composta por Anderson Cunha e gravada por Ivete em 2001, música esconde vários significados e foi antídoto contra o novo 'complexo de vira-latas' no futebol

Publicado em 1 de março de 2020 às 11:01

- Atualizado há um ano

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Depois de um longo domínio do pagode, o Carnaval 2020 trouxe um leve frescor à combalida Axé Music. Embora não tenha sido uma música arrasa-quarteirão, daquelas que todos os outros artistas cantam e que não sai da boca do folião, “O Mundo Vai” teve até uma resposta positiva nos circuitos Dodô e Osmar.

A canção, pensada por cinco cabeças (entre elas a própria Ivete Sangalo), venceu o prêmio Bahia Folia, da TV Bahia, e a votação entre os leitores deste CORREIO em resultados divulgados na última Quarta-Feira de Cinzas.

Dançante, ritmada e com um bom refrão, ainda assim está longe de ser um primor artístico ou ter a excelência de sua irmã mais velha: a extraordinária “Festa”, de 2001. Ivete no Carnaval do ano 2000, um ano antes do lançamento de seu maior hit (Foto: Márcio Costa e Silva/Arquivo CORREIO) Não há, nem nos 35 anos da Axé Music e, por incrível que pareça, nem nos 70 anos do trio elétrico, uma música tão bem acabada e com tantos significados ocultos quanto a composição de Anderson Cunha. “Festa” é a maior música baiana feita para o Carnaval – batendo hinos memoráveis como “Atrás do trio elétrico”, “Chame Gente”, “We are Carnaval” e “Baianidade Nagô”.

Lançada a polêmica, precisamos agora sustentar os argumentos. Então, vamos lá. Recentemente conversei com o músico e pesquisador Tom Tavares para uma reportagem publicada na BBC Brasil sobre como os Beatles (sim, eles mesmos) influenciaram o Carnaval de Salvador e também o movimento liderado por Luiz Caldas, em 1985.

Nesse bate-papo, Tom me deu a senha para seguir nesta trilha. "A sequência harmônica de Festa é exatamente a mesma de Twist And Shout. Essa não é uma música dos Beatles, mas eles que a popularizaram quando lançaram no disco Please, Please Me (o primeiro deles, 1963). Vai Rolar a Festa consegue reproduzir essa mesma sequência harmônica. É um plágio? Claro que não. Mas é uma inspiração direta, sem dúvidas", disse.

Eu não tenho um ouvido musical tão apurado, mas a partir desta informação consegui encontrar semelhanças nos acordes entre os dois hits. Tente ouvir uma depois da outra e comparar.

Ivete canta a música Festa (repare que o clipe começa com um besouro. Em inglês: beetle)

Música Twist and Shout, dos Beatles: 

Vale ressaltar que Twist and Shout não é conhecida apenas por beatlesmaníacos e/ou pessoas que viveram naqueles agitados anos 1960. Por conta do filme Curtindo a Vida Adoidado, um clássico da Sessão da Tarde dos anos 1980, muita gente vibrou com Ferris Bueller (em papel vivido por Matthew Broderick) dançando esta música em uma das cenas mais icônicas da obra.

Relembre abaixo: 

 

Saindo da melodia e debruçando sobre a letra, podemos perceber como “Festa” é uma saudação à história do Carnaval de Salvador, embora, por genialidade do compositor, em nenhum momento deixe isso tão explícito.

A letra contextualiza a cidade da Bahia como gueto do mundo, numa lógica geopolítica de divisão entre países ricos (centrais) e pobres (periféricos). No entanto, por vocação para a esbórnia, é lá, naquele canto esquecido do globo, onde a mistura das raças e a celebração da alegria realmente acontece.

 Veja a primeira estrofe:

 Festa no Gueto Pode vir, pode chegarMisturando o mundo inteiroVamos ver no que é que dá Hoje tem Festa no Gueto Pode vir, pode chegar Misturando o mundo inteiro Vamos ver no que é que dá

Os versos seguintes mostram que Anderson Cunha sabia exatamente o que estava fazendo quando escreveu a letra. Ele já tinha pego a melodia dos Beatles e usado como base para sua nova composição. Daí em diante, mostrou enorme conhecimento da história do Carnaval da Bahia.

Isso porque nosso Carnaval é um encontro de duas potências musicais de raízes distintas. De um lado os acordes, a partir da música trieletrizada, trazida por Dodô e Osmar quando construíram a guitarra baiana e o trio elétrico. Armandinho e os Irmãos Macedo (Betinho, Aroldo e André), filhos de Osmar, eram fãs de rock e colocaram Beatles nessa composição elétrica, que incluía ainda o frevo pernambucano.

Gil e Caetano, idealizadores da Tropicália, também beberam da fonte dos Beatles para produzir clássicos do cancioneiro popular. Caetano, inclusive, usa a guitarra distorcida do quarteto mais famoso do mundo para construir “Atrás do trio elétrico” (1968).

A outra força musical que trouxe a primazia à musicalidade baiana é a percussão, vinda de elementos dramaticamente afro-brasileiros: os atabaques, timbaus e xequerês. A música de candomblé, o ixejá, o samba duro. Anderson Cunha tratou de homenagear essa mistura:

Tem gente de toda cor Tem raça de toda féGuitarras de Rock 'n Roll Batuque de Candomblé Vai lá pra ver a tribo se balançar O chão da terra tremer Mãe preta de lá mandou chamar Avisou, avisou, avisou, avisou

 O encontro das guitarras de Rock ‘n Roll com o batuque de Candomblé é, justamente, a gênesis da Axé Music. No primeiro disco do gênero, Magia, de 1985, Luiz Caldas também mistura ritmos caribenhos e da América Central na batida. O estudioso Tom Tavares, então, demonstra o pulo de gato da canção “Festa”.

“A música Festa também tem, em um de seus trechos, uma sequência harmônica de La Bamba, grande sucesso do fim dos anos 1950. É também uma outra grande inspiração de Anderson Cunha”, defende.

A canção La Bamba é um sucesso no mundo todo. Estourou na voz do americano (descendente de mexicanos) Ritchie Valens, que morreu no auge da carreira em um trágico acidente de avião, em 1959. Sua história é contada no filme La Bamba (de 1987) – outro clássico da Sessão da Tarde.

Veja:

Há ainda outras conexões possíveis de estabelecer com palavras da música de Anderson Cunha. “Festa”, que dá nome à canção, por exemplo, se conecta com outro termo semelhante na música “Também quero beijar”, de Moraes Moreira e Pepeu Gomes (guitarrista, que fez parte dos Novos Baianos e que tem profunda identificação com o Rock ‘n Roll).

Nesta canção de 1981 (pré-Axé Music), Pepeu diz: “Teu cheiro é o marinheiro do barco fantasma que vai me levar. Mundo inteiro. Haja fogo, haja guerra. Haja guerra que há... Festejo”.

Ouça a música "Eu também quero beijar".

Já a palavra “avisou” encontra ecos na música “Nossa gente”, no samba-reggae do Olodum. Vale lembrar que o samba-reggae, assim como a Axé Music, nascem na Bahia a partir da mistura de um ritmo universal (o reggae, que nasce periférico, mas conquista o mundo) e um som local, o samba (que cumpre exatamente o mesmo destino). “Nossa gente” também enaltece o Carnaval e ainda saúda os Orixás.

Nossa gente é quem bendiz É quem mais dança O gringos se afinavam na foliaOs deuses igualando Todo encanto, toda dança Rataplam dos tambores Gratificam...

Avisa lá, avisa lá, avisa lá, ô ôAvisa lá lá que eu vou

Avisa lá, avisa lá, avisa lá, ô ôAvisa lá que eu vou

Festa no futebol Quando foi lançada, em novembro de 2001, a música “Festa” foi um sucesso absoluto na voz de Ivete. É, até hoje, um dos hits de maior sucesso na carreira da diva do Axé.

Em junho de 2002, na campanha do pentacampeonato da Seleção Brasileira de futebol, o técnico Luiz Felipe Scolari usou a música para animar os jogadores na conquista da Copa no Japão e na Coreia do Sul. Naquela seleção havia quatro baianos (assim como quatro é o número dos integrantes dos Beatles): Vampeta, Edílson, Júnior Nagata e Dida.

Tirando a numerologia barata, a música Festa cumpriu, sem o mesmo aprofundamento, um papel semelhante que a Bossa Nova teve nos anos 1950. Na conquista da primeira Copa, na Suécia, a Seleção Brasileira venceu o famoso complexo de vira-latas (termo cunhado por Nelson Rodrigues) e conquistou o título com Pelé, Garrincha, Vavá, Zagallo, Zito e Didi. Um ano depois, o juazeirense João Gilberto gravava “Chega de Saudades”, legando ao mundo a sofisticação, beleza e qualidade da música terceiro-mundista.

Já “Festa”, lançada um ano antes do Mundial, embalou a conquista de Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho, inclusive batendo nas quartas-de-final os ingleses – uma grande ironia, afinal. Uma vez que o Reino Unido é justamente o país dos Beatles, que forneceram uma forte base melódica para o resto do mundo, e na qual Anderson Cunha se baseou para gravar seu grande hit. A criatura venceu seu criador.

Veja o clipe que a Globo fez da conquista do Penta com a música "Festa"

Sem julgamento de gosto ou qualidade musical, da mesma forma que o jazz americano encontrou o samba brasileiro e serviu de cama para a Bossa Nova, o ixejá baiano encontrou o rock inglês e nasceu a Axé Music.

Festa no Gueto são os países periféricos tendo voz para quebrar ordens estabelecidas e se apropriar de criações universais e, num caldo cultural complexo, misturar com a força local do que tem de melhor. É vencer condições inferiores impostas pelos mais poderosos a partir de releituras do mundo e de si mesmos.

Avisou, avisou...