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Paulo Leandro
Publicado em 28 de abril de 2019 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
O desporto moderno tem sua raiz na “égalité” francesa. Uma de suas expressões mais evidentes é o duelo. Quem nunca viu um filme épico em que um carinha ofendido bate de luva branca na cara do agressor e manda ele escolher as armas e o local do desafio?>
Tem juiz e tudo para fazer contagem: 10, 9, 8... e quando chega em 1, os dois se viram rapidinho e quem for mais esperto acerta o outro geralmente com um tiro de garrucha. Esta combinação de regras iguaizinhas para todos é a base simbólica do desporto.>
Daí, pode-se estranhar: ainda temos algo de desporto em competições nas quais alguns times entram com 171 fuzis de 80 tiros, como o vizinho do condomínio, contra outros armados de machadinhas, tipo os tupinambás abatidos pelo feroz Mem de Sá?>
Pois é esta configuração que temos hoje. É o que se chama de justiça meritocrática, aritmética ou aristocrática. Clubes com mais apoio de mídia, arbitragem, dinheiro, patrocínio, torcida, e outros com bem menos recursos.>
O racismo é explícito quando se faz um campeonato em que já sabemos de antemão quem vai disputar o título e as vagas de Libertadores e aqueles cujo sofrimento é tentar manter-se na Série A.>
Para recuperarmos o conceito de desporto, na atualidade, em vez de igualdade, como nos primeiros duelos, precisamos adaptar o conceito original para o de equidade, que puxa por justiça proporcional, geométrica, distributiva, reparadora.>
Se um clube tem orçamento xis e outro tem orçamento xis + y, o clube de menor poder teria de largar com um número maior de pontos para equilibrar. Assim, defendo um campeonato em que os times largam de diferentes pontuações.>
Desta forma, recuperamos a noção de desporto, preservada a lógica de mercado. Uma faixa de times com menos recursos larga com 30 pontos; outra, com 20; uma terceira, com 10 pontos. Os megabarões partem de zero. Aí eu vejo equidade. Aí tem desporto.>
Para um campeonato ser, de fato, brasileiro, teríamos também de implantar um sistema de cotas. Não é possível que o Norte nunca entre na Série A. Nem o Centro-Oeste. O Nordeste de Conselheiro, Lampião e #LulaLivre tem clubes valentes, mas sobem e descem.>
Chega de racismo sudestino-sulista. Vamos distribuir este pirão. Precisamos garantir às regiões marginalizadas uma quantidade proporcional de representantes nas séries A e B. Vejam a quantidade de clubes paulistas na B, que feios!>
O futebol parece divertido, até chamo de “futilball” meio de brincadeira, mas é a coisa mais séria que existe na história deste país. Através da antiescola do “futilball” aprendemos contra-valores que internalizam no nosso coração sentimentos maus.>
Aprendemos a odiar; aprendemos que uns têm eternos privilégios e outros devem ser exterminados; aprendemos que jogador razoável é bom negócio para enriquecer cartola; pode ocorrer até, se houver, de bandidos de microfone se amaziarem com federações. Tudo normal, não?>
Mas podemos escolher ser do bem, cultivar a fraternidade entre as torcidas, permitir o crescimento de todos, ser cronista honesto e repudiar escroques, se houver. É possível multiplicar alegrias, humanizando e fortalecendo o futebol, que tem o poder de unir.>
Quanto mais inclusivo e virtuoso, mais belo e brasileiro será nosso “futilball”!>
Paulo Leandro é jornalista e professor Doutor em Cultura e Sociedade. Escreve aos domingos.>