Por uma questão pessoal

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  • Kátia Borges

Publicado em 13 de fevereiro de 2021 às 13:59

- Atualizado há um ano

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Meus ancestrais não conheceram sorvete. Moravam numa pequena cidade do interior da Bahia onde ainda não havia o gelado como nós o conhecemos hoje, quero dizer, em sabores cada vez mais caros e sofisticados. Também desconheciam o creme batido com leite comprado em lojas elegantes, acondicionado em copinhos de papel ou tabocas feitas de farinha de trigo, manteiga e ovos, que também se come.

Mas nunca renegamos na família o que fosse doce. Em compota, figos e pêssegos em caldas pareciam surgir por milagre das panelas de alumínio da minha avó, comprados na Feira de Água de Meninos. Eram servidos em potes de cristal decorados com flores às visitas, em sinal de educação e boas-vindas, em taças que só deixavam a cristaleira da sala de meus avós uma vez por ano.

Se penso na infância com minha mãe, lembro bem de suas balas feitas de açúcar e limão, que colavam no céu da boca. Distraída, eu ficava assistindo a mutação da massa, que se formava a partir do cristal na frigideira acesa no fogão. O termo caramelizar, só aprendi mais tarde. E então minha mãe moldava as bolinhas de um amarelo vivo e transparente entre suas mãos, vermelhas de manejar a massa quente.

Eu gostava de fazer gelar aquelas bólides e deixar que corressem entre a língua e os dentes como se fosse quebrar um deles. Eu imaginava a trajetória dos cometas no universo imenso, enquanto, acidulce, meu pequeno mundo ia se formando e explodindo por dentro. Os coleguinhas da escola chupavam balas de verdade, descascando o colorido de suas Soft, e foi ali que notei pela primeira vez que era mais pobre que eles.

Rainha do improviso, minha mãe também produzia em casa pedras de gelo com sabores de frutas, o que no Nordeste chamamos de abafa banca. Nunca entendi bem a razão desse nome. Gastava-se menos ao encher a cuba de suco de fruta do que na compra de saquinhos plásticos com que se embalava o geladinho. Alguns vizinhos até faziam de suas janelas pontos de venda e cobravam duas ou três moedas.

Aprendi com minha mãe que se pode inventar em casa tudo que não se pode comprar no mercado, tão doce e sofisticado quanto. Isso de cozinhar ser um modo de amar os outros, aprendi com ela mesmo. E nada se compara até hoje à manga concentrada em cubos coloridos, desaguando lentos na boca, um afluente da infância. Só na adolescência, começamos a ir à Sorveteria da Ribeira. 

Atacávamos em grupo, nossa pequena família, deslumbrada e divertida, diante de uma miríade de frutas derretidas em tabocas quentinhas. Atravessávamos, em seguida, a rua e nos sentávamos na muradinha, de onde se avista o subúrbio. Todos no luxo, tomando sorvete. Mas o que lembro da sorveteria são os quadros nas paredes. Uma mulher grávida em cenários diferentes e a frase “por uma questão pessoal”.

Qual questão pessoal? Eu pensava, enquanto a língua deslizava no coco espumante. Só bem depois descobri que o artista enigmático era Selarón, um chileno que faria história no Brasil ao colorir as escadarias que hoje levam o seu nome no Rio de Janeiro. A sorveteria cresceu, mudou de dono. Meus pais morreram, vivemos sob o ataque de um vírus. Mas comprei morangos e já esvaziei a cuba de gelo.