Povo sem defesa: Bahia tem déficit de 1.239 defensores públicos

No estado, 276 estão em atuação; oito regiões não têm serviço

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  • Fernanda Santana

Publicado em 4 de março de 2018 às 06:10

- Atualizado há um ano

Grávida de oito meses, Eneida Marques, 34 anos, se divide entre olhares desconfiados à televisão e carinhos na barriga, sentada em uma pequena cadeira estofada. Ao lado dela, 100 pessoas também olham ansiosas para o televisor à esquerda da sala. Todas vêm o adiantar da hora enquanto aguardam a senha de atendimento na sede da Defensoria Pública do Estado (DPE) destinada a questões familiares e cíveis ser exibida, em Nazaré. Entre reclamações e muxoxos, nenhuma delas têm expectativa de sair dali tão cedo. A DPE diz que a espera máxima na área de Família é de 30 dias, mas a verdade, dita pela boca de quem espera, é outra. Eneida em busca do defensor público que a ajude a receber do pai de dois dos seus filhos pensão alimentícia (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Os interessados nos serviços da sede Casa da Defensoria das Famílias I, que incluem defesa gratuita a cidadãos de baixa renda e facilitação de acordos e mediações para evitar processos judiciais, começam a chegar às 5h30, meia hora antes do início do funcionamento, apesar do agendamento ocorrer online ou pelo disque 129. A gestante, um pouco atrasada, chegou ao local às 7h30. Há um ano, ela repete o caminho de sua casa, no Rio Vermelho, até o Jardim Baiano, em busca de um defensor público que a ajude a receber do pai de dois dos seus filhos a pensão alimentícia.

O drama da doméstica, via de regra, é o mesmo das mulheres que procuram a Casa, onde ocupavam 95 dos 107 assentos, quando o CORREIO visitou o local, na última quinta-feira (1º). Separadas dos ex-companheiros, elas vêm o amor se tornar inimizade pela falta de pagamentos dos direitos dos filhos e iniciam uma verdadeira odisseia na Defensoria. No caso de Eneida, a justificativa clássica para não conseguir assistência jurídica é a falta de informações e documentos corretos. “Eu não sei mais o que fazer, esta é a quinta vez que venho aqui”, desabafa.

A atendente de balcão Damiris Santana, 30, também está perdida. Saiu de Itapuã, às 6h30, em direção à Casa, disposta a desarquivar o processo que move contra o pai de seus dois filhos, de quem está separada há 12 anos. Desde 2009, ela alterna idas à Defensoria para localizar o ex-marido, que ora paga a pensão, ora esquece dos meninos. Todas as vezes, garante, é um “jogo de empurra”.“A gente sempre fica sem saber o que fazer. É informada de que tal vara está fechada, que não tem prazo”, relata. À sua frente, outra mulher reclama: “Tem que ter sensibilidade para entender o que estamos passando”. Damiris olha e ri da própria sorte: “Tá vendo?”.Dramas familiares como o de Eneida e Damires, ou casos de divórcio, por exemplo, representam 28% das demandas da Defensoria de Salvador. O topo da lista das principais solicitações da instituição é ocupado, ainda, pelas áreas Criminal (19%), com 42 defensores, e Proteção aos Direitos Humanos (11%), representada por 12 defensores. A vara da família, embora a mais procurada, tem 32 defensores, atrás das Especializadas Criminal (42) e Cível (35), segundo dados informados pelos próprios defensores.  Damiris: pedidos como o dela correspodem a 28% das demandas da DPE (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) A assimetria parece ter sua matriz em um problema estrutural: na Bahia, onde 276 defensores estão em atuação, existe um déficit de 1.239 novos profissionais, de acordo com Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizado em 2013. Existem, no estado, 279 comarcas. Delas, apenas 29 possuem defensores públicos. Resultado: além da população incapaz de pagar por um advogado esperar além do necessário para receber ajuda, o defensor fica abarrotado de processos, atos e ações extrajudiciais, como mediações. 

No interior do estado, a situação é muito pior. No território da Chapada Diamantina, composta por 11 cidades e 229,8 mil pessoas, não há sequer um defensor público em atuação. Em outras sete regiões baianas, como a do Velho Chico, 336,5 mil moradores também não tem acesso à auxílio jurídico gratuito. Há, ainda, casos em que a região conta com a ajuda de um defensor, mas de maneira pouco expressiva. No Vale do Jiquiriçá, a pior entre as áreas observadas pelo CORREIO com base no estudo do Ipea, são 205.167 pessoas para apenas um defensor. A renda média de um trabalhador com carteira assinada na Bahia, de R$ 1.865, não reflete a ausência de defesa gratuita nos municípios baianos. Apesar de não estipular rendimento mínimo ou máximo para assistir juridicamente um cidadão, o salário de quem procura a Defensoria Pública do Estado (DPE) raramente ultrapassa três salários mínimos (R$ 2.862). Significa que, nas cidades com defensores, os moradores podem, a qualquer momento, necessitar dos serviços da instituição por não ter condições de contratar um advogado.

Há 10 anos, Daniel Nicory atua como defensor público da área criminal. Diferentemente das questões vinculadas à Família e Cível, em casos de crime, o assistido é agendado e encaminhado diretamente para um Defensor. Teoricamente, não há espera para o solicitante. Mas muito trabalho para o defensor.“A demanda é muito grande. Mas, com o tempo, a gente acaba aprendendo a administrar”, diz Nicory.Em Salvador, 2,9 milhões de pessoas contam com apenas 123 defensores, nas nove áreas de atuação. A indicação do Ipea é de que, a cada 10.000 pessoas, um defensor esteja à disposição. No cenário atual, são 23,58 mil pessoas por profissional.

Baixo orçamento O descompasso também é observado no quesito financiamento. Para este ano, a Lei Orçamentária Estadual (LOA) prevê um orçamento de R$ 202,47 milhões para a Defensoria Pública da Bahia, o 20º estado brasileiro em cargos ocupados por defensores, ainda segundo o Ipea. Do polo oposto da defesa, o Ministério Público do Estado (MPE), conhecido como órgão de acusação, receberá R$ 563 milhões para despesas como o pagamento dos salários dos 57 procuradores e 520 promotores.  Também membro do Conselho Superior da Defensoria, Daniel Nicory reconhece o orçamento da Defensoria como um possível empecilho para a instituição. E acrescenta: “Se eu fizer a conta por baixo, para preencher os cargos, precisaríamos de, pelo menos, R$ 400 milhões”. A diferença dos valores, no entanto, pode ter uma explicação prática. 

A quantia investida pelo Executivo nos órgãos sob sua administração, explica a advogada e professora de Direito Financeiro, Patrícia Linhares, depende do diálogo com as respectivas instituições. “No caso específico da Defensoria, por exemplo, o Executivo deve cumprir o que é solicitado. Em teoria, ele não poderia opinar, alterar, fazer cortes prévios. Na prática, no entanto, a instituição pode prever um corte e abaixar o orçamento. O histórico de cortes acaba desestimulando”, explica. 

A DPE não respondeu à reportagem se o valor a ser recebido foi estabelecido na primeira proposta apresentada. Durante o ano, caso a verba acabe, é possível solicitar crédito suplementar, mas não há garantia de sucesso no pedido.

Histórico da Defensoria Os baianos começaram a ter acesso gratuito a assistência jurídica e judiciária em 1975. Até então, o embrião da Defensoria Pública da Bahia era um pequeno órgão vinculado à extinta Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social chamado Coordenação de Assistência Jurídica (CAJ), do qual se despregou dez anos depois. A independência enquanto instituição ocorre apenas em 2005. Mas, de lá para cá, o quadro de defensores públicos poucas vezes acompanhou o avanço

A mudança mais recente na instituição, em dezembro de 2017, foi a permissão de agendamento por meio do site do órgão. Era o fim das filas quilométricas formadas em frente aos 12 postos de atuação em Salvador, muito antes do nascer do sol. “Trouxe muito mais conforto. Essa mudança é qualidade de vida”, defende a defensora pública e coordenadora do setor da capital, Gianna Gerbasi.

A Comissão de Aprovados do 7º concurso da DPE em 43 anos, cujo resultado foi divulgado no dia 22 de janeiro, no entanto, está insatisfeita com o tratamento dado ao órgão e reclama da ausência de chamadas para novos defensores, o que poderia suprir o déficit registrado. Dos 200 aprovados, apenas 17 foram nomeados, mas, segundo a comissão, para vagas de substituição. Não há, portanto, renovação, ainda de acordo com o grupo, que busca frequentar eventos políticos para visibilizar o quadro deficitário da Defensoria.

A advogada Clarissa Lima é um dos 15 participantes do grupo. Desde a formação em Direito, na Universidade de Salvador (Unifacs), entre 2009 e 2014, ela decidiu a profissão: seria defensora pública. Quando se formou, em 2016 deu contornos de realidade ao sonho. Contratada pelo Núcleo de Práticas Jurídicas da Baiana de Direito no mesmo ano, pediu demissão para se dedicar exclusivamente ao concurso. Mas o esforço não cessou nem quando o resultado da aprovação foi divulgado, no dia 15 de maio de 2017.

A jovem, por vezes, desanima. Nada perto da fase de estudos, quando os fios do cabelo, por estresse, começaram a cair. Ainda assim, sente o peso da pressão alheia e pessoal. “No dia que saiu o resultado final, foi uma das melhores sensações da vida. Só que veio a preocupação: porque, mesmo quando a gente passa, a gente imagina que a luta continua. A defensoria não é tratada como deveria”. A DEP também não respondeu à reportagem se há planos de uma nova chamada de aprovados nas próximas semanas. Clarissa, no entanto, mantém a certeza: “Quero muito ajudar quem precisa”.

*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier e da editora Mariana Rios