'Precisei viajar para melhorar do trauma', diz dono de bar onde Moa foi morto

Um mês após assassinato, familiares e amigos se reuniram no Dique Pequeno

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  • Tailane Muniz

Publicado em 7 de novembro de 2018 às 20:52

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Almiro Lopes/CORREIO

As lembranças do dia 8 de outubro ainda perturbam a cabeça de João Carlos Costa, 51 anos, dono do bar onde Romualdo Rosário da Costa, o mestre Moa do Katendê, 63, foi assassinado depois de uma discussão política.

Amigo de Moa há mais de 20 anos, o comerciante contou que precisou sair de Salvador para tentar esquecer a cena de horror, como ele define, do mestre caído no chão - em frente ao estabelecimento que funciona sob sua direção há duas décadas, na comunidade do Dique Pequeno, no Engenho Velho de Brotas, bem em frente ao Dique do Tororó. 

O local em que Moa nasceu, cresceu e viveu a maior parte da vida, como lembra João, ficou marcado por sua morte.

A Ladeira de Nanã, ao lado do Bar do João, e também onde aconteceram os primeiros ensaios do afoxé Badauê, fundado por Moa na década de 70, ficou cheia de amigos, familiares e admiradores que, na noite desta quarta (7), se reuniram para assistir ao documentário "Mestre Moa do Katendê - A Primeira Vítima", do diretor Carlos Pronzato (veja no final da reportagem).

"Foi um dia horrível. Um crime brutal, que me chocou num nível que eu nem sei explicar. Até hoje eu sinto muito pelo cara que ele era. Eu precisei viajar para melhorar do trauma, porque nunca tinha visto nada parecido", comentou João ao CORREIO.  Familiares e amigos assistem a documentário em homenagem a Moa do Katendê (Foto: Almiro Lopes/CORREIO) Point de Moa, segundo João, ero bar que ele dava como referência a desconhecidos que iam visitar a comunidade. "Ele sempre vinha aqui. Me pedia muito pra pedir carro pra ele por aplicativo, porque tinha pouco traquejo com isso", recorda. A exibição do documentário, para João, não poderia acontecer em outro lugar."Tinha que ser aqui, acho importante, até para as pessoas daqui entenderem a importância dele", afirmou o comerciante.Um telão posicionado no pé da ladeira, que em parte é escadaria, foi exibido às 19h. Poetas e outros artistas também participaram da homenagem. Eles declamaram poemas, lembraram traços da personalidade de Moa e pregaram a "resistência do povo preto".

Resistência Desde que foi morto pelo barbeiro Paulo Sérgio Ferreira de Santana, 36, que está preso e virou réu no caso, mestre Moa foi homenageado, só em Salvador, em pelo menos cinco atos. Conforme o produtor cultural e amigo do mestre, Chicco Assis, Katendê morreu como "símbolo de resistência" e, por isso, os atos em sua memória precisam "resistir".

"Não poderíamos deixar a marca dos 30 dias da morte passar em branco. Foi a oportunidade que encontramos de trazer esse documentário sobre ele. É a maneira que temos, ainda que tardia, de valorizá-lo enquanto patrimônio cultural, manter viva a memória dele", pontuou Chicco, um dos organizadores do ato.

Homem de Xangô O documentário, produzido em 14 dias, é fiel às histórias de vida do mestre, segundo a filha mais nova, a fisioterapeuta Jasse Mahi da Costa, 28. Jasse, que nasceu em São Paulo, é filha do último casamento de Moa e era com quem o capoeirista morava há 15 anos, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). Mas era no Dique que ele passava a maior parte do tempo.

"O documentário é muito forte. Eu fico muito feliz e honrada de ver esse reconhecimento à memória de meu pai, que era tão grandioso em tudo", comentou a caçula.

Segundo Jasse, o pai, que era "homem de Xangô" - orixá da Justiça - e nunca levantou a voz para qualquer pessoa, pois, "quem é de Xangô, transborda amor"."Ele era calmaria. Todas as vezes que o mundo foi tempestade para ele, ele foi calmaria para o mundo. Eu já fui tempestade para ele, e ele era minha calma. Até hoje eu prefiro pensar que ele está viajando. Eu não sei de onde tirei força, mas sei que essa força fortaleceu minha mãe".A fisioterapeuta comentou, ainda, que sua mãe, que tem 64 anos, tem se refugiado da dor com a ajuda das obras sociais onde atua como voluntária. O casal estava junto há mais de 20 anos. De acordo com a filha, Moa, que era Ogã - filho de santo -, dedicava o tempo a compor músicas, além de produzir caxixi [instrumento de chocalho] e colares para vender na Europa.

Um homem do mundo, como lembrou Jasse, Moa costumava viajar para fora do país. Mas era em Salvador, revelou a fisioterapeuta, que o mestre encontrava a calmaria, o amor dos familiares e a inspiração que precisava para manter viva a cultura que tanto prezava.