Promessa cumprida: asilo funciona em Lauro de Freitas após promessa a Irmã Dulce

Ester, que conheceu a Santa Dulce aos 11 anos, prometeu abrir asilo diante da freira e do Papa João Paulo II

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  • Kátia Borges

Publicado em 20 de outubro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Sora Maia/Reprodução/CORREIO

O primeiro encontro entre a freira e a menina de 11 anos aconteceu em 1986. Dessas artes do acaso que empurram rumo ao destino quase no susto. Isso defino, após ouvir a sua história. Converso com Estelita Candeias Fonseca, 45 anos, no pequeno escritório que fica nos fundos do asilo fundado por ela há uma década. Na noite anterior, ela dera plantão no local, mas não reclama. Na varanda da casa, idosos aguardam o horário do banho, em sofás e cadeiras, observando os estranhos curiosos da imprensa.

É uma tarde de calor intenso de outubro de 2019, embora ainda seja Primavera. Passaram-se 27 anos da morte da de Irmã Dulce - agora Santa Dulce dos Pobres - e estávamos a dois dias da festa que celebrará, em Salvador, neste domingo (20), a sua canonização como primeira santa nascida no país, na Arena Fonte Nova. A cerimônia oficial aconteceu no último dia 13, no Vaticano, celebrada pelo Papa Francisco.

Longe dos holofotes da mídia, e daquela justa festa, Estelita anda às voltas com o asilo em obras, por conta do estouro de um cano de esgoto. Na impossibilidade de localizar o ponto certo do dano na tubulação, foi necessário quebrar todo o piso externo.

Ocupando uma casa de telha vã, com vários cômodos, alugada no Campo do Jockey, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), o Ester Lar abriga hoje 22 pessoas, com idades que variam entre 52 e 103 anos. Vinte e uma mulheres e um homem.

Por conta da presença dele na casa – é casado há 62 anos com uma das internas –, Ester está reformando um vão, hoje sem uso, para transformar em quarto. Há 34 outros idosos na fila de espera. Mas não é aqui que esse drama começa, e é com um sorriso no rosto que ela nos conta. Hoje, asilo Ester Lar recebe 23 idosos - são 22 mulheres e um único homem (Foto: Sora Maia/CORREIO) Legado e bênção Estelita diz que ganhou de Santa Dulce dos Pobres missão e bênção, sob as vistas do então Papa e hoje também santo João Paulo II. O ano era 1990, quatro anos depois de terem se conhecido. Há até um retrato colorido, emoldurado, dependurado no azul cobalto de uma das paredes do escritório, registrando o encontro entre os três.

Nas publicações em jornais, quando reproduzem aquela cena, no entanto, muitas vezes, Estelita costuma ser cortada da foto. A freira frágil, deitada na cama do Hospital Santo Antônio, segura as mãos dela entre as suas. O Papa parece abençoar o gesto.

Ao comentar o processo de canonização da religiosa, que marcou sua infância e adolescência, ela mal segura as lágrimas. Lamenta que o reconhecimento não tenha vindo antes, amenizando em vida a luta diária em prol dos mais carentes. Conhece bem de perto as jornadas de Santa Dulce pela Cidade Baixa. Conheceram-se assim, apenas Dulce e Ester (nome/apelido que ela lhe deu), a menina de 11 anos ajudando a freira a carregar os pacotes de doações entregues por Mamede Paes Mendonça.

Por curiosidade, após deixar os pacotes com mantimentos na despensa, Ester foi espiar os idosos acolhidos no Hospital Santo Antônio. Viu ali – supremo espanto – uma mulher sem braços e sem pernas.

Modelo Por caridade, Ester passou a ajudar diariamente no cuidado com eles. Lia a Bíblia para os internos. Servia água e comida, aos que já não possuíam forças. E, assim, foi crescendo, entre os estudos na escola e o serviço voluntário. Aos 8 anos, perdera a mãe. Criada pela tia, encontrou em Dulce um modelo.

“Ele era muito caridosa também em relação aos colaboradores, incentivava que estudassem, conseguia cópias de livros, dava puxões de orelha nos momentos certos”, relembra. E todos os dias, enquanto a saúde permitiu, Dulce cumpriu o ritual acertado com a tia de Ester.

A freira levava a menina até o ônibus e recomendava ao motorista que a deixasse em segurança no ponto. Aos 16 anos, Ester foi surpreendida com o pedido da freira para que criasse um asilo de idosos - pedido reforçado pela benção do Papa João Paulo II.

“Você aceita?”, perguntou o Papa à menina, ainda meio atordoada com aquele pedido – eis a cena registrada naquela foto pendurada no escritório. Ester disse que sim, fazendo valer a bênção, mas foi tocar a vida após a morte da mentora, em março de 1992. Ester inaugurou asilo há uma década, primeiro em Itapuã, depois em Lauro de Freitas (Foto: Sora Maia/CORREIO) Fez faculdade, casou-se, teve dois filhos, hoje adultos, separou-se. Até que, uma noite, alguém bateu em sua porta. Era uma mulher desconhecida, acompanhada de uma senhora idosa. Procurava justo ali por um asilo.“Quem lhe disse que eu abrigo idosos?”, perguntou a ela.Quase caiu para trás ao ouvir a resposta. A tal mulher disse que encontrou, naquela rua mesmo, uma freira, baixinha e muito magrinha, que havia indicado a casa dela.

“Dulce nunca acreditou nessas coisas”, diz alto para si mesma. De todo modo, Ester acolheu aquela senhora. “Era a imagem do desamparo, do desespero”.

Promessa paga A partir dali, outros foram chegando, de jeito que não lhe restou mais alternativa. Ester cumpriria, finalmente, o prometido à Dulce e ao Papa Paulo II: abriria um lar para idosos.

Não foi fácil, precisou aprender primeiro a lidar com a burocracia, adequar o espaço às exigências dos órgãos de controle, organizar a gestão dos poucos recursos. Assim que se sentiu segura, Ester abriu oficialmente as portas do asilo.

A primeira sede, no bairro de Itapuã, em Salvador, durou poucos meses. Em seguida, o abrigo foi transferido para onde funciona hoje, na cidade vizinha de Lauro de Freitas. Alguns idosos chegavam trazidos por filhos, netos, noras. Outros vinham com a Polinter - órgão ligado à Polícia Civil da Bahia -, provisoriamente perdidos. Logo, o local estava cheio de gente.

Ester também era chamada quando vizinhos denunciavam maus tratos contra alguma pessoa. Certa feita, conseguiu autorização para invadir uma casa e resgatar uma mulher de 52 anos agredida pelo filho, usuário de drogas.

O acolhimento não respeita o rigor das faixas etárias. Saímos de lá já de noitinha, após visitarmos todas as dependências do asilo, descobrindo mais e mais histórias.

Asilo é monitorado por circuito de câmeras No escritório do asilo fundado há uma década, Ester nos diz que monitora todos os aposentos, e mostra as câmaras do circuito interno, na sede atual, em Lauro de Freitas.

Para ela, o sistema de vigilância é um modo de estar presente em cada canto da casa. Nas pequenas telinhas, acompanhamos as atividades rotineiras de quem trabalha com ela: a limpeza, a preparação para o banho.

Há, ainda, uma cozinheira que segue a dieta prescrita por um médico. “Temos apenas um voluntário, todos os outros trabalham com carteira assinada”, diz.

O dinheiro para tanto vem de colaborações diversas e de algumas pensões de internos: “Precisamos sempre de pacotes de fraldas, por exemplo”.

Cada idoso consome cerca de 120 pacotes de fraldas para adultos por mês, o equivalente a quatro trocas diárias. E, claro, que todas as doações serão bem-vindas. Para os interessados em ajudar, Ester fornece os números de contato (71 3378- 7770 ou 71 9 8744-9905.). Se você é um deles, anote com cuidado.

Antes de ir embora, pergunto se ela cultiva um sonho. Sim, responde com um sorriso emocionado. Sonha em dar ao seu abrigo uma casa própria, um lugar para descansar e viver.